Você é contra ou a favor de Wittgenstein?

Ludwig Wittgenstein foi um filósofo austro-britânico cujo trabalho abrangeu duas fases distintas, muitas vezes referidas como o "primeiro Wittgenstein" e o "segundo Wittgenstein". No "Tractatus Logico-Philosophicus", sua obra inicial, Wittgenstein aborda questões de lógica, linguagem e filosofia da mente. Mais tarde, em suas Investigações Filosóficas, ele abandonou muitas das ideias do Tractatus, desenvolvendo uma abordagem mais pragmática e centrada na linguagem com foco na compreensão linguística cotidiana.

Alguns filósofos o consideram um dos pensadores mais importantes do século XX, enquanto outros discordam de suas ideias ou abordagens específicas, em especial, o posicionamento cético em relação ao dualismo.

Resumidamente, a estrutura de raciocínio entendida como dualismo, promove como resultado o existir de uma fronteira ou limite que excede o mundo físico e se constitui em uma estrutura não-física, também denominada de metafísica, donde provém entre outras coisas, a alma que anima o corpo humano, a essência dos objetos e de tudo que no mundo físico existe, ou ainda, a existência de um ser criador do mundo físico e a possibilidade de diversas entidades não-físicas constituídas de inteligência.

Uma interpretação possível sobre o dualismo, consiste em entender ele como uma tentativa de explicar o mundo de forma externa ao próprio mundo, considerando certa totalidade que abarca o físico e o não físico, em outras palavras, explicar o sistema, se posicionando através da criatividade racional especulativa, buscando revelar uma estrutura externa não-física constituinte do objeto ou fenômeno estudado.

Esta interpretação parece sinalizada por Oliveira quando este afirma que:

A concepção tradicional da linguagem esteve sempre ligada a certas concepções antropológicas, de modo especial concepções a respeito do espírito dos atos espirituais. O pensamento tradicional foi, eminentemente, um processo classificatório, tendendo a uma classificação dos entes, a sua distinção a partir dos elementos essenciais. Determinar a essência de algo significou, na metafísica clássica, estabelecer o lugar ocupado por algo no todo, traçar seus limites com outras realidades situadas na ordem universal, isto é, no mundo. Definir o homem significa distingui-lo do não homem. (OLIVEIRA, 2006, p.122).

No caso da percepção dualista sobre os processos mentais, Paul M. Churchland esclarece:

Na abordagem dualista das mentes estão incluídas diversas teorias bastante diferentes, mas todas elas concordam em que a natureza essencial da inteligência consciente está em algo que é não-físico, algo que está definitivamente para além do âmbito de ciências como a física, a neurofisiologia e a ciência da computação. O dualismo não é a concepção mais amplamente defendida em meio à comunidade científica e filosófica hoje em dia, mas é a teoria da mente mais comum em meio às pessoas em geral; ele está profundamente arraigado na maioria das religiões populares do mundo inteiro e tem sido a teoria da mente que tem predominância durante a maior parte da história do Ocidente. (CHURCHLAND, 1998, p.25).

Para Daniel C. Dennett a percepção dualista ou metafísica ocorre com base em um efeito lingüístico, denominado de Sistemas Intencionais, onde “a intencionalidade é fundamentalmente um aspecto de entidades lingüísticas.” (DENNETT, 1993, p.34)

Dennett tenta esclarecer esta questão sugerindo que se imagine uma pessoa jogando xadrez contra um computador e salienta que uma estratégia para se ganhar da máquina é admitir, mesmo que não seja verdadeiro, o fato da máquina intencionar vencer o jogo.

Dennett segue explicando:

O conceito de sistema intencional é uma noção relativamente ordenada e não-metafísica, quando é abstraída de questões de composição, constituição, consciência, moralidade ou divindade das entidades que ela cobre. Assim, por exemplo, é muito mais fácil decidir se uma máquina pode ser um sistema intencional que decidir se uma máquina realmente pode pensar, ou ser consciente, ou moralmente responsável. Essa simplicidade a torna ideal como uma fonte de ordem e organização nas análises filosóficas dos conceitos “mentalistas”. Tudo que uma pessoa possa ser – uma mente ou alma incorporada – um agente autoconsciente, uma fonte “emergente” de inteligência -, ela é um sistema intencional, e o que quer que se siga de ser simplesmente um sistema intencional é, assim, verdade a seu respeito. É interessante ver o quanto do que sustentamos ser o caso sobre as pessoas ou suas mentes se segue diretamente do fato de serem elas sistemas intencionais. (DANNETT, 1993, p.48).

O conceito de sistema intencional de Dennett possui alguma familiaridade com a gramática superficial de Wittgenstein, ambos apontam para o equívoco da linguagem como conseqüência do uso ou escolha, de um caminho interpretativo mais fácil e menos comprometido com as regras lingüísticas, no sentido da gramática profunda.

P. M. Hacker também parece concordar que a perspectiva dualista ou metafísica está ancorada em certo caráter antropológico e gramatical, Hacker justifica:

A ideia de que o ser humano seja uma criatura composta por um corpo e uma alma (ou mente, ou espírito) é muito antiga. A ideia está ligada ao nosso medo da morte, ao desejo de uma sobrevivência num mundo mais feliz, ao nosso pesar pela morte dos entes queridos e nossa esperança de reencontrá-los um dia. Ela está associada a fenômenos comuns da vida humana que estão envoltos em mistérios, tais como os sonhos, quando parecemos habitar um outro mundo, sem conexão com nosso corpo adormecido e no qual poderíamos interagir com os mortos. Está associada também a fenômenos mais obscuros, como as experiências visionárias ou as “viagens” para fora do corpo. Além disso, porém, essa idéia está profundamente arraigada na gramática de nossas linguagens. (HACKER, 2000, p.18).

Para Wittgenstein, seguir uma gramática é aprender o uso de um conjunto de regras. Neste sentido, seguir uma regra é uma “prática baseada em um saber, na espontaneidade do indivíduo que subjaz à aplicação da regra.” (WITTGENSTEIN, 2005, § 198).

Wittgenstein aponta para o fato do critério de verdade, entendendo este como admissão do que é certo ou errado, verdadeiro ou falso, estar ancorado nos jogos de linguagens e sua gramática, onde cada grupo cultural é livre para estabelecer os critérios de racionalidade que determinarão o jogo de linguagem.

Condé esclarece esta perspectiva:

Quando falo de um modelo de racionalidade inspirado em Wittgenstein, não estou apenas interessado em dizer que a linguagem articula-se sistematicamente entre suas partes, mas prioritariamente tentando mostrar que é nessa articulação no interior de uma forma de vida que se estabelece a racionalidade que nos possibilita determinar o que aceitamos, de acordo com os jogos de linguagem e sua gramática, como correto ou não. Assim, nossas “certezas” são dadas pela gramática e pelos fragmentados, circunstanciais e abertos jogos de linguagem. A gramática de uma forma de vida não é fechada e é a partir desse aspecto que ela possui, em medidas diversas, ramificações que se constituem como “semelhanças de família”, podendo interconectar-se com gramáticas de outras formas de vida. (CONDÉ, 2004, p.29).

Estando o critério de verdade ancorado no interior de uma forma de vida através da gramática, Wittgenstein parece concordar que as “verdades” são fabricadas na linguagem conforme a necessidade de cada grupo cultural, onde qualquer crítica aos grupos muito distintos perde o sentido, uma vez que as observações de um determinado grupo sobre outro pode motivar para o debate, mas a aceitação dos argumentos por um ou outro grupo cultural é um exercício livre. Assim sendo, é pouco provável que ocorra um entendimento entre grupos onde os jogos de linguagem sejam muito distintos, com pouca familiaridade. Neste sentido, ou o argumento não será entendido ou simplesmente não será aceito. Wittgenstein está propondo certo relativismo ou ceticismo?

A constatação de uma linguagem cujo critério de verdade é interno ao grupo social que o fomenta e dependente do jogo de linguagem e sua forma de vida, é entendido por Apel, como um aspecto instrumental e relativista que leva em direção ao abandono da filosofia e ao esquecimento do logos.

Oliveira esclarece um dos momentos onde o modelo dos jogos de linguagem proposto por Wittgenstein pode ser apontado como insuficiente:

A necessidade de auto-reflexão da linguagem se manifesta, porém, por exemplo, quando se levanta a questão de como pode o filósofo compreender diferentes jogos de linguagens e compará-los entre si em relação a sua compreensão do mundo. Semelhante coisa pressupõe a possibilidade de, por meio da auto-reflexão, ir para além de si mesmo e que tal autotranscendência possa chegar até uma reflexão filosófica sobre a linguagem e a crítica da linguagem. Por isso, o modelo da pura descrição dos jogos de linguagem não é suficiente. (OLIVEIRA, 2006, p.259).

Para Apel, Wittgenstein se equivocou nas duas fases. No Tractatus defendeu o transcendental, porém, ficou preso numa posição semântica enquanto nas Investigações Filosóficas, caminhou em direção à pragmática, mas descartou o transcendental considerando-o pura ilusão.

Para Condé, “Apel também faz uma leitura tradicional do autor das Investigações, que conduz, entre outras coisas, a enquadrar Wittgenstein como um filósofo relativista.” (CONDÉ, 2006, p.204).

Condé parece concordar com a possibilidade de uma perspectiva que aponte para certo relativismo não absolutista esclarecendo que:

O principal ponto de divergência entre Apel e Wittgenstein é certamente a questão do universalismo (transcendentalismo) apeliano que conduz, substanciado por uma leitura tradicional, à interpretação do segundo Wittgenstein como um típico relativista. Certamente que, a partir da filosofia wittgensteiniana, uma perspectiva transcendental não mais pode ser concebida. Mas isso não implica necessariamente cair no relativismo absoluto. (CONDÉ, 2006, p.209).

Condé sinaliza que o relativismo parcial contido nas Investigações Filosóficas é “o único caminho para lidar com as questões da racionalidade.” (CONDÉ, 2004, p.23).

Kripke e Rorty, cada um ao seu modo, atribuem um caráter cético ao segundo Wittgenstein, Condé sinaliza que Rorty interpreta Wittgenstein como um filósofo “edificante”, nas palavras do próprio Rorty:

Os grandes filósofos sistemáticos são construtivos e oferecem argumentos. Os filósofos edificantes são reativos e oferecem sátiras, paródias, aforismos. Sabem que seu trabalho perde o propósito quando o período contra o qual estão reagindo já terminou. São intencionalmente periféricos. Os grandes filósofos sistemáticos, como os grandes cientistas, constroem para eternidade. Os grandes filósofos edificantes destroem em beneficio de sua própria geração. (CONDÉ, 2006, p.37).

Dias, responde às observações de Kripke, Rorty, conforme segue:

Não se trata de demolir o que até então suponhamos saber, nem tampouco de calar como se estivéssemos diante da fragmentação do nosso universo. A atitude adequada neste, assim como em outros tempos mais remotos, é a de abrir bem os olhos e verificar, antes de mais nada, se já não estamos adotando um ponto de vista que favoreça a produção de ilusões. A atitude do filósofo, que a tudo é capaz de estender a dúvida hiperbólica, não está muito distante do alienista, que em todos vislumbra a insensatez. Há um momento em que a suspeita mais adequada é a de que somos nós que estamos jogando de forma equivocada. Tudo isso Wittgenstein nos ensina de forma primorosa no decurso de suas amplas investigações filosóficas. Crítico e criativo, sim. Cético ou relativista, não. (CONDÉ, 2006, p.12).

Plínio Smith, Danilo M. Filho e Oswaldo Porchat concordam que as “semelhanças entre o pirronismo e o segundo Wittgenstein são profundas, enquanto as diferenças se revelam superficiais.” (PINTO, 2008, p.265).

Para Pinto, não existe nenhuma similaridade uma vez que os céticos pirrônicos assumem a suspensão do juízo frente aos assuntos metafísicos, calando-se sobre o assunto, enquanto Wittgenstein atribui ao problema metafísico um equívoco da linguagem. Neste sentido, Pinto argumenta:

Quanto ao segundo Wittgenstein, ele transforma os problemas metafísicos em problemas de descrição da gramática da nossa linguagem e utiliza o método de esclarecer o modo de funcionamento desta gramática multiplicando os exemplos de usos e analogias envolvidas. O resultado costuma ser a constatação de que o problema metafísico original constitui um equívoco linguístico. Isso não é a mesma coisa que passar intempestivamente para o estado de suspensão geral em virtude da indecibilidade dos problemas filosóficos até então considerados. A atitude pirrônica consiste em abandonar o plano da discussão teórica em benefício da vida prática. Num espírito muito diferente, a terapia wittgensteiniana consiste simplesmente em usar a técnica de dissolver cada problema mediando a análise do uso comum das palavras envolvidas. Wittgenstein se mantém o tempo todo no mesmo plano, a saber, o da avaliação do problema filosófico a partir da linguagem comum. (PINTO, 2008, p.275).

Para Grayling a prática de uma metodologia não sistemática, como a encontrada nas Investigações Filosóficas dificilmente seria estimulada entre professores e estudantes. Grayling também se opõe ao trabalho do segundo Wittgenstein argumentando:

Como vimos, a filosofia na visão de Wittgenstein é uma terapia; o que importa é dissolver erro, não construir sistema explanatório. Nesse sentido, o estilo se ajusta perfeitamente à intenção. Ele é profético, oracular; consiste em breves observações com o propósito de remediar, lembrar, desiludir. Isso dá aos escritos do segundo Wittgenstein uma aparência de colcha de retalhos. Muitas vezes as conexões entre as observações são pouco claras. Há uma superabundância de metáforas e parábolas; há ilusões, questões retóricas, uma hifenização imaginativa; há demasiada repetição. Muito disso é proposital – um ponto bastante enfatizado nas páginas anteriores -, pois o estilo de Wittgenstein tem a intenção expressa de promover seu objetivo contra o erro da teorização. No entanto, poucos recomendariam seriamente esta forma de fazer filosofia, digamos, para estudantes. (GRAYLING, 2002, p.149).

Spaniol concorda com as dificuldades existentes na obra Investigações Filosóficas, “o que as investigações nos apresentam são anotações no estilo ordinário e, aparentemente sem maior conexão entre si.” (SPANIOL, 1989, p.14) no entanto, entende o segundo Wittgenstein como uma contribuição importante e, argumenta:

Existe hoje, ao lado da medicina curativa, também a medicina preventiva, que, conforme o caso, pode ser mais importante do que a primeira. De modo análogo, também o método terapêutico de Wittgenstein pode ser usado de maneira preventiva, ou seja, como recurso para impedir o surgimento de problemas filosóficos. Trata-se de adquirir uma consciência reflexa da gramática de nossas palavras. Neste sentido, falamos aqui da elaboração de um pensamento crítico. Não que outros filósofos não tivessem desenvolvido trabalhos com a mesma finalidade. Mas parece possível derivar uma contribuição importante do método de Wittgenstein. (SPANIOL, 1989, p.140).

Wittgenstein marcou a filosofia com sua obra Investigações Filosóficas e, aqueles que estão com Wittgenstein percebem ele como autor de uma nova filosofia capaz de abordar os problemas filosóficos sob uma perspectiva totalmente independente da tradição filosófica. Neste sentido, o principal argumento contra a interpretação cética ou relativista aparentemente presente nas Investigações Filosóficas consiste na afirmação da impossibilidade de uma interpretação adequada quando da aplicação de abordagens tradicionais. Os que estão contra Wittgenstein afirmam que a Investigações Filosóficas possui uma abordagem vaga, confusa e carece de um posicionamento sistêmico.

Independente de concordarem ou discordarem é consenso entre os interlocutores que Wittgenstein em maior ou menor escala inspirou debates e modificações na perspectiva tradicional sobre a linguagem.

E você, é contra ou a favor da perspectiva de Wittgenstein?

Referência:

CONDÉ, Mauro Lucio Leitão. As teias da razão: Wittgenstein e a crise da racionalidade moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2004.

CONDÉ, Mauro Lucio Leitão. Linguagem e mundo. São Paulo: Annablue, 1998.

CHURCHLAND, Paul. Matéria e consciência: uma introdução contemporânea à filosofia da mente. São Paulo: UNESP, 2004.

DANNETT, Daniel. Brainstorms. São Paulo: UNESP, 1993.

GAYLING, A.C. Wittgenstein. São Paulo: Loyola, 2002.

HACKER, P. M. S. Wittgenstein: sobre a natureza humana. São Paulo: Unesp, 2000.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006.

SPANIOL, Werner. Filosofia e método no Segundo Wittgenstein. São Paulo: Loyola, 1989.

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