O surgimento da Web3

Basicamente, a Web3 visa descentralizar a internet, permitindo que os usuários tenham controle sobre seus dados e interajam diretamente com outros usuários, sem intermediários. Essa nova abordagem da internet busca proporcionar maior autonomia aos usuários, garantindo a segurança e a privacidade de suas informações.

Os primeiros passos que culminaram no surgimento do Web3 ocorreram entre 1998 e 2015, com a busca pela solução do gasto duplo e do problema dos generais bizantinos.

O problema do gasto duplo (double spending) é um desafio fundamental em sistemas digitais de pagamento e moedas digitais. Ele se refere à possibilidade de gastar a mesma quantia de dinheiro digital mais de uma vez antes que a transação seja efetivamente confirmada e registrada de forma imutável.

Em transações com moedas físicas, como dinheiro em papel ou moedas metálicas, o gasto duplo não é um problema, pois a moeda física é transferida fisicamente de uma pessoa para outra, impossibilitando que a mesma moeda seja usada para outra transação simultaneamente.

No entanto, em sistemas digitais, como transferências eletrônicas ou moedas digitais, é fácil copiar e replicar informações digitais. Isso cria a possibilidade de que uma pessoa mal-intencionada envie a mesma unidade de moeda digital para mais de uma pessoa, ou até para si mesma, antes que a rede consiga confirmar a autenticidade da transação.

Para os entusiastas do dinheiro digital, até 1998 não existia uma proposta consistente sobre como resolver de forma segura o problema do gasto duplo.

Foi em 1998 que Wei Dai, um cientista da computação de origem chinesa, apresentou o B-money, uma proposta consistente sobre a possibilidade de resolver o problema do gasto duplo, colaborando para os fundamentos que posteriormente sustentariam o surgimento da moeda digital.

Em 2005, Nick Szabo, um jurista e criptógrafo pesquisador sobre contratos digitais e moeda digital, estudioso sobre o tema desde 1995, também apresentou uma proposta chamada de Bit Gold. O Bit Gold foi uma tentativa de criar uma forma descentralizada de dinheiro eletrônico.

Os modelos teóricos propostos por Wei Dai e Nick Szabo, ao tentar resolver o problema do gasto duplo, deram uma possível resposta ao problema dos generais bizantinos, algo fundamental para o desenvolvimento do conceito de Web3.

O problema dos generais bizantinos, também conhecido como "Byzantine Generals Problem", é um conceito teórico na ciência da computação e teoria dos sistemas distribuídos que aborda a coordenação de ações em um ambiente onde a comunicação entre máquinas é sujeita a falhas ou mensagens maliciosas.

O cenário hipotético do problema envolve um grupo de generais bizantinos que estão acampados com suas tropas ao redor de uma cidade inimiga. Eles precisam tomar uma decisão conjunta sobre atacar ou recuar, e essa decisão deve ser a mesma entre todos os generais para que o ataque ou recuo tenha sucesso.

No entanto, alguns dos generais podem ser traidores ou estarem sob a influência do inimigo, e eles podem enviar mensagens falsas ou enganosas para os outros generais, levando-os a tomar decisões diferentes. O desafio é encontrar um algoritmo ou protocolo que permita que os generais cheguem a um consenso confiável, mesmo com a ocorrência de intenções maliciosas ou falhas na comunicação.

O problema dos generais bizantinos foi proposto por Leslie Lamport, Robert Shostak e Marshall Pease em um artigo intitulado "The Byzantine Generals Problem" publicado em 1982. Neste trabalho, eles apresentaram o conceito do problema e discutiram sua relevância em sistemas distribuídos e redes de computadores.

Esse problema é uma metáfora para os desafios enfrentados em sistemas distribuídos, como redes de computadores, onde as máquinas (generais) precisam tomar decisões baseadas em informações compartilhadas, mas podem haver falhas na rede, mensagens corrompidas ou informações maliciosas que podem enganar os outros.

No mundo real, assim como na internet, essa metáfora coloca o problema da necessidade em se eliminar a confiança nos acordos sociais, incluindo transações financeiras, produzindo algum tipo de garantia da ação.

A confiança entre estranhos é uma questão crucial, pois a inibição em estabelecer novas relações dificulta ações entre desconhecidos, demandando mediadores, como agências de namoro, para garantir a segurança dos envolvidos, ou bancos, para garantir a segurança financeira.

Entretanto, a Web3 surge como uma solução inovadora para esses problemas. Implementada inicialmente com a criação da blockchain do Bitcoin entre 2008 e 2009, a Web3 possibilitou uma solução centrada na moeda digital, permitindo transações seguras e confiáveis sem a necessidade de intermediários.

Em 2015, a blockchain da rede Ethereum foi lançada, trazendo uma evolução ainda maior para a Web3 ao introduzir os contratos inteligentes. Com eles, além do uso de moeda digital, tornou-se possível o desenvolvimento de diversos aplicativos descentralizados, eliminando a necessidade de intermediários e permitindo a relação direta entre pessoas sem que estas tenham que confiar cegamente nas ações umas das outras.

Com base no uso da blockchain e das criptografias computacionais, os sistemas baseados em Web3 oferecem uma nova perspectiva para um ambiente digital mais seguro, confiável e autônomo.

Dessa forma, a Web3 emerge como uma promissora evolução da internet, trazendo consigo o potencial para revolucionar a forma como interagimos e conduzimos transações no mundo digital, ao eliminar a dependência de terceiros e proporcionar relações sem a necessidade de uma confiança maior entre desconhecidos.

Atualmente, existem diversos aplicativos rodando no modelo Web3, descentralizados e sustentados por criptografia. Entretanto, nessa fase inicial de consolidação, esses aplicativos enfrentam algumas dificuldades.

As duas principais dificuldades estão associadas à popularização do uso, uma vez que ocorre um estranhamento das pessoas ao manusearem sistemas digitais baseados em criptografia, e, em segundo lugar, pelo choque cultural que a proposta causa ao romper com a cultura tradicional da mediação ou centralização.

No entanto, mesmo com algumas dificuldades a tecnologia Web3 parece estar encontrando seu lugar, apresentando uma tendência de crescimento acelerado e oferecendo novas oportunidades para aqueles que estiverem preparados. Experimentar, conhecer as fragilidades e adquirir habilidades nesta nova forma de interagir pela internet prepara você para o futuro que está batendo à porta.

Web3 e suas fragilidades

Personalidades como Tim Berners-Lee, criador do protocolo World Wide Web (www), Elon Musk, conhecido bilionário da área tecnológica, e Jack Dorsey, fundador do Twitter, são alguns dos críticos da tecnologia chamada de Web3.

Para Berners-Lee, é inadequado considerar a tecnologia Web3 como a próxima geração da internet, já que o armazenamento de dados precisa ser privado, rápido e barato, o oposto do sistema Web3 que, segundo Berners-Lee, é lento, caro e público. Elon Musk e Jack Dorsey também expressaram sua visão, considerando que a Web3 parece mais uma jogada de marketing do que uma tecnologia viável para uma nova internet 100% descentralizada.

É comum ocorrerem alguns exageros motivados pelo entusiasmo quando do surgimento de uma novidade tecnológica, e parece ser o caso da Web3, principalmente diante da afirmação categórica de que a descentralização será a nova forma de interação na internet, sugerindo que a centralização é algo ultrapassado.

Pode ser relevante não esquecermos que desde nossa migração de caçadores-coletores para uma sociedade assentada na agricultura e na formação de comunidades fundamentadas em cidades, nos concentramos na centralização como caminho para o desenvolvimento social.

Olhando para a história da internet, percebemos que, de fato, ela surgiu como um fenômeno descentralizador. Quando a internet foi criada nas décadas de 1960 e 1970, ela era projetada como uma rede descentralizada. A origem da internet remonta ao projeto ARPANET, financiado pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, com o objetivo de criar uma rede de comunicação robusta e resistente a falhas, que pudesse manter a conectividade mesmo em caso de ataques militares.

Essa natureza descentralizada da internet foi fundamental para seu crescimento exponencial e disseminação global. No entanto, ao longo do tempo, algumas formas de centralização surgiram em certos aspectos da internet, como em plataformas de mídia social, provedores de serviços de internet (ISPs) e empresas que controlam infraestruturas críticas.

Assim como nosso desenvolvimento social evoluiu de ações descentralizadas de caçadores-coletores para a centralização na agricultura e o surgimento de grandes centros urbanos, na internet nos organizamos de tal forma que alimentamos e mantemos grandes plataformas com alguma centralização de poder, como o Google, a Apple, entre outras. Passamos para o algoritmo dessas plataformas o poder de mediar as relações e ações humanas.

No entanto, parece pouco provável que nossos instintos sociais optem pela total descentralização da internet, contrariando nossa tradição evolutiva que emergiu de escolhas centralizadoras. O esperado é que, passada a euforia e os exageros dos mais entusiasmados, a proposta da Web3 enquanto descentralização ocupe seu lugar em um mundo centralizado como forma de mitigar abusos.

Não se trata de superar a centralização mas de mitigar abusos produzidos por esta, como dificultar a corrupção política, a censura indiscriminada, ou ainda, diminuir o poder em certos setores como a invasão de privacidade e o uso inadequado dos dados dos usuários. Estas são algumas possibilidades que a consolidação da Web3 tem potencial de melhorar.

Mesmo os mais críticos da Web3 admitem que existe lugar para esta tecnologia, não como fenômeno soberano de superação da internet centralizada, mas como ferramenta de apoio para uma centralização mais justa aos interesses da sociedade.

Neste momento é importante uma maior atenção sobre:

Caráter experimental: A tecnologia por ser experimental provavelmente vai atrair uma gama significativa de desenvolvedores e investidores, gerando o surgimento de propostas inovadoras que em sua maioria podem se mostrar insatisfatórias deixando de existir. Apostar em projetos inovadores é assumir riscos.

Centralização disfarçada: Embora a Web3 prometa descentralização, muitos críticos apontam que ainda existem elementos de centralização, especialmente nas plataformas e aplicativos populares. Alguns afirmam que grandes empresas e consórcios podem dominar o espaço, controlando protocolos e definindo regras, o que pode minar o princípio da descentralização.

Complexidade e acessibilidade: A Web3 ainda é relativamente complexa para a maioria dos usuários comuns, o que pode dificultar a adoção em massa. Além disso, a falta de acessibilidade pode excluir certos grupos de participar plenamente da web3, criando potencialmente mais desigualdades.

Perda de controle e recuperação de dados: Como a Web3 é baseada em tecnologias descentralizadas, a recuperação de dados perdidos ou a correção de erros pode ser um desafio, pois não há uma entidade central para intervir.

Regulação e conformidade: A natureza descentralizada da Web3 pode criar desafios para a aplicação de regulamentações e leis. Isso pode levar a cenários em que atividades ilegais ou prejudiciais são mais difíceis de serem controladas e punidas.

Especulação e bolhas: Algumas críticas apontam para a presença de especulação exagerada no mercado de criptomoedas e ativos digitais na Web3, levando a bolhas e riscos significativos para os investidores.

No entanto, ao mesmo tempo que existem riscos, também é possível mensurar benefícios na implementação de sistemas baseados em Web3, entre eles:

Maior Segurança Cibernética: Em sistemas descentralizados, os dados e as operações não estão concentrados em um único ponto central, tornando-os menos vulneráveis a ataques cibernéticos direcionados a um único ponto de falha. Isso aumenta a resistência da rede e melhora a segurança dos dados.

Resistência a falhas: A descentralização permite que a rede continue operando mesmo que algumas partes dela enfrentam problemas ou falhas. Isso torna a infraestrutura mais robusta e confiável, reduzindo o risco de interrupções generalizadas.

Autonomia do Usuário: Em sistemas descentralizados, os usuários têm maior controle sobre seus dados e identidade. Eles não precisam confiar em uma autoridade central para gerenciar suas informações pessoais e financeiras.

Redução do Risco de Censura: A descentralização dificulta a censura e a manipulação de informações, pois não há uma única entidade com controle sobre a rede. Isso é especialmente importante em ambientes onde a liberdade de expressão e o acesso à informação são fundamentais.

Inclusão Financeira: A descentralização pode democratizar o acesso a serviços financeiros, permitindo que pessoas sem acesso a instituições financeiras tradicionais participem da economia global através de criptomoedas e finanças descentralizadas (DeFi).

Transparência e Imutabilidade: A tecnologia blockchain, frequentemente usada em sistemas descentralizados, oferece um registro transparente e imutável de transações e atividades. Isso aumenta a confiança e a prestação de contas dentro da rede.

Inovação Aberta e Colaborativa: A descentralização pode fomentar a inovação aberta e a colaboração entre diferentes partes interessadas. Isso permite que projetos e plataformas se desenvolvam com base nas contribuições de uma comunidade diversificada de desenvolvedores e usuários.

Propriedade dos Ativos Digitais: Em sistemas descentralizados baseados em blockchain, os usuários têm controle direto sobre seus ativos digitais, como criptomoedas e tokens não fungíveis (NFTs), sem a necessidade de intermediários.

Menos Dependência de Terceiros: A descentralização reduz a dependência de empresas e instituições centralizadas, proporcionando uma estrutura mais resiliente e independente.

Flexibilidade e Adaptabilidade: Sistemas descentralizados são geralmente mais flexíveis e adaptáveis a mudanças e evoluções, pois não precisam passar por processos burocráticos complexos para implementar atualizações e melhorias.

Compreender a proposta e como está se desenvolvendo o modelo Web3 pode ser decisivo para que você aproveite as oportunidades que são próprias das tecnologias emergentes.

Na medida do possível, não deixe de observar como e para qual direção a Web3 está se direcionando, especialmente projetos baseados em Blockchain do Bitcoin, como o Nostr, ou ainda, a rede lightning.

Iniciar pelo conceito de descentralização presente nos fundamentos do Bitcoin pode ser uma boa forma de entender tudo que emergiu depois, distinguindo o marketing das propostas efetivas.

Web3 e os limites da liberdade de expressão

A Web3 é um modelo de organização social e tecnológica que está em constante desenvolvimento para entregar aos usuários um tipo de liberdade polêmica quando o assunto é bem-estar social e limites de expressão.

No modelo atual de organização social e tecnológica, as pessoas possuem seus impulsos de comunicação regulados pelas instituições, as postagens são moderadas e as empresas podem ser responsabilizadas juridicamente. Esse modelo de regulação gera algum bem-estar social ao conter impulsos negativos por meio da centralização dos dados e garantir uma correta identificação das pessoas.

Preconceitos, ofensas, discursos de ódio e outras ações danosas são amenizadas pela moderação e, em alguns casos, punição. No modelo atual, que é centralizado, as pessoas são facilmente identificadas e responsabilizadas. Por outro lado, abusos institucionais, calando protestos legítimos e forçando uma narrativa de quem está no controle, são um efeito colateral indesejado que ocorre com frequência nesse tipo de organização.

No modelo da Web3, a proposta é passar o controle dos dados aos seus usuários, sem mediação institucional, além de descentralizar os servidores, dificultando a censura. Como não existe um servidor central, é difícil retirar do ar um dado conteúdo. Sendo os dados não legitimados por uma empresa, a identidade da pessoa pode ser falsa ou ocultada, ficando anônima.

Uma tecnologia experimental (mas centralizada) bem-sucedida apontando nesta direção foi o fórum 4chan, fundado em 2003 e ativo até hoje, com mais de doze milhões de visitantes por mês, sendo considerado o fórum online mais acessado do mundo.

O fórum 4chan é de postagem anônima, não possui cadastro e a consequência é uma grande propagação de informações falsas, teorias da conspiração e pessoas não identificadas.

Outra experiência (também centralizada) foi a rede social GAB, lançada em 2016 como uma alternativa ao Twitter, capaz de proporcionar e garantir liberdade de expressão. Essa rede social enfrentou diversos problemas, perda de parcerias e muita confusão com postagens de discursos de ódio, entre outras expressões danosas para a nossa sociedade.

O projeto da Web3 tenta resolver os problemas de censura abusiva das instituições centralizadas, proporcionando meios para uma liberdade saudável e necessária, que pode ser alcançada pela descentralização e controle dos dados gerenciado pelo próprio usuário.

Na prática, ainda é cedo para saber se o esforço dos desenvolvedores da Web3 é uma utopia ou algo tangível de ser realizado.

Uma grande dificuldade que encontrei ao experimentar tecnologias Web3 foi a falta de usabilidade para não tecnólogos. Em geral, as tecnologias Web3 exigem conhecimento técnico prévio, afastando a maioria das pessoas.

Outro desafio para os desenvolvedores Web3 é a falta de propagação e entendimento da proposta que norteia esse modelo. A maioria das pessoas está interessada no uso prático e não no modelo social que fundamenta uma dada solução tecnológica.

A ausência de conhecimento da fundamentação social-tecnológica gera muita confusão e problemas de mau uso das tecnologias. O Bitcoin é um bom exemplo, é uma tecnologia experimental focada na liberdade econômica ao dispensar intermediários como bancos e instituições regulatórias. No entanto, acumulou uma grande quantidade de pessoas especulando pela possibilidade de ficarem ricos, tornando-se alvos fáceis de golpistas que aproveitam do impulso ganancioso da vítima para enganar e roubar.

Tecnologias experimentais são, em certa medida, experimentos sociais. Compreender a fundamentação de tais experimentos e seus resultados é importante para uma transformação saudável das relações sociais e uma forma de melhor orientar as pessoas em seu entorno.

Pais, professores e educadores em geral, podem ficar melhor preprados ao compreender os modelos sociais que estão em disputa na produção tecnológica.

Para entender os aplicativos, protocolos e soluções baseadas na web3 é aconselhavél conhecer o problema fundamental da liberdade de expressão e organização dos modelos sociais que essa proposta busca aperfeiçoar.

Se você puder, separe uns minutos para ler esse artigo: Liberdade de expressão e discurso do ódio: um exame sobre as possíveis limitações à liberdade de expressão.

Subscribe to Jeferson Silva - PU3OSI
Receive the latest updates directly to your inbox.
Mint this entry as an NFT to add it to your collection.
Verification
This entry has been permanently stored onchain and signed by its creator.