Como a web3 pode revolucionar programas de fidelidade

Na última semana, durante apresentação de resultados a investidores, Brady Brewer e Howard Schultz, respectivamente CMO e CEO interino do Starbucks, falaram sobre os planos da empresa de usar web3 (especialmente NFTs) para “criar uma comunidade e dar acesso a experiências e outros benefícios a seus clientes”. Schultz foi além e disse que o futuro CEO da empresa precisará, entre outras coisas, ter profundo entendimento sobre tecnologias relacionadas à terceira geração da internet. No mesmo dia, a Starbucks publicou em seu blog oficial texto assinado por Brewer e Adam Brotman, responsável por criar o sistema de pagamento e o aplicativo da rede de cafeterias. Brotman foi designado como advisor desta nova empreitada em web3, o que demonstra a importância que a empresa está dando a ela.

No texto, os autores falam que estão “fascinados pelo modo como os NFTs permitem que as pessoas sejam donas de ativos digitais programáveis de marcas, que também podem ser usados como passes de acesso” e que “planejam criar uma coleção de tokens não-fungíveis, cuja posse dará ao dono o status de membro da comunidade e acesso a experiências e vantagens exclusivas”. Apesar dessas palavras serem muito amplas e darem margem a inúmeras possibilidades, não deixa de ser animador saber que uma companhia que possui um programa de rewards com quase 27 milhões de usuários somente nos EUA pensa em evoluir este programa com o uso de NFTs. É uma prova incrível do poder que esta tecnologia tem muito além de meros colecionáveis digitais sem utilidade, como venho escrevendo em todos os textos anteriores.

Mas como seria um programa de fidelidade usando web3? Como supracitado, não podemos saber com certeza o que o Starbucks está pensando, mas podemos muito bem especular como o uso dessas tecnologias pode revolucionar programas como estes. E é exatamente isto que farei.

Programa de fidelidade 3.0

O que escreverei aqui poderia facilmente ser adaptado para outras iniciativas que envolvem membership, como sócio torcedor no futebol (já fiz um artigo sobre o tema ano passado), fã-clube de artistas e criadores de conteúdo, e clubes de membros em geral. Para mim, o grande problema de todos é que o modelo atual, na grande maioria dos casos, relega aos participantes um papel 100% passivo. Hoje, ao participar de um programa de fidelidade de uma marca, por exemplo, eu ganho benefícios conforme meu nível de atividade. Esses benefícios podem ser pontos, que podem ser trocados por produtos, experiências e vantagens, ou diretamente estes produtos, experiências e vantagens. Porém, se eu não uso estes pontos ou benefícios, eu “morro” com eles, ou seja, mesmo tendo conquistado o direito de tê-los, não tenho a opção de escolher o que fazer com eles. Ou usufruo ou este direito me é tirado. Pior, se por um acaso eu não quiser mais participar, simplesmente perco tudo, mesmo tendo dedicado tempo e dinheiro para aquela marca e para fazer parte daquele membership. Mas por que é preciso ser assim?

Vamos fazer um exercício de imaginação de como um programa como este poderia se tornar mais atrativo ao adotar tecnologias web3. Antes, é preciso deixar claro que ainda existem barreiras tecnológicas quando falamos da terceira geração da internet no que tange a usabilidade das ferramentas e a experiência do usuário, que necessitam ser aprimoradas, e barreiras de entrada para a maioria das pessoas, principalmente a educação sobre o tema. Também devemos considerar questões regulatórias, pois tratam-se de conceitos novos. Superar isto, no entanto, deveria ser parte do objetivo das empresas que querem desenvolver em web3 e programas de fidelidade são uma dessas aplicações da vida real que tanto cobramos, pois têm o poder de popularizar e massificar o uso destas tecnologias. Mas vamos ao que interessa:

1) Primeiro, todos os ativos do programa seriam “guardados” dentro de uma carteira cripto, usando uma blockchain com baixo custo de transação. Esta carteira poderia ser não-custodiada, como uma MetaMask ou Phantom, por exemplo; custodiada pela própria empresa responsável pelo programa — permitindo assim que o(a) participante não precise ter o trabalho e/ou o conhecimento de como abrir sua própria carteira, o que eliminaria a fricção; ou ainda aceitar as duas possibilidades. Seja como for, é importante que mesmo a carteira custodiada permita o envio e o recebimento de ativos entre outras carteiras diferentes, liberando assim o contato com o mundo externo.

2) A pessoa teria que conectar sua carteira às aplicações relacionadas ao programa para validar suas atividades e ir crescendo de nível. Algumas dessas atividades poderiam ser token-gated, ou seja, apenas participantes com determinados tipos e/ou números de tokens teriam acesso. Como a maioria das empresas certamente gostaria de saber quem são estes participantes (e carteiras cripto são identificadas por chaves alfanuméricas anônimas), tais empresas poderiam exigir o vínculo dessas carteiras a dados reais (como nome, CPF, email…) ou estimular que esses dados fossem revelados oferecendo vantagens no próprio programa para isso. Lembrando que, apesar da promessa da web3 ser do usuário ter o controle sobre seus dados, muitas aplicações, como as exchanges de criptoativos, exigem por lei a identificação de seus clientes, o famoso KYC (Know Your Customer).

3) Aqui a primeira grande mudança: o título de membro poderia ser um NFT, dinâmico, modificado conforme o nível de engajamento da pessoa aumenta ou diminui e objetivos são cumpridos. Hoje já é possível vincular os metadados de um NFT a fontes de informação atualizadas de forma recorrente usando ferramentas como a Chainlink. A NBA fez exatamente isso em abril, quando lançou sua coleção de NFTs dos atletas que estão jogando os playoffs da Liga, alterados de acordo com a performance deles em quadra.

Mas por que fazer do título de membro um NFT? Simples, porque se a pessoa dedicou tempo e dinheiro para crescer seu perfil dentro do programa de fidelidade, este ativo deve ser dela e, como tal, ela pode fazer o que bem entender com ele. Se por um acaso esta pessoa quiser deixar o programa ou mesmo se receber uma proposta de alguém interessado em adquirir o status e benefícios de seu perfil, ela poderá capitalizar em cima disso, afinal fez por merecer com sua dedicação.

E por que isso seria bom para o programa? Por alguns motivos: seria um atrativo para que o membro seja ainda mais engajado e ativo; seria um estímulo para que ele seja um evangelizador deste programa para outras pessoas, já que quanto mais interesse, mais valor seu título teria; se abriria a possibilidade de geração de receita com esta revenda no mercado secundário cobrando royalties e até determinando outras condições, como valor mínimo e máximo, por exemplo, por meio do contrato inteligente do token. E para uma pessoa que não é membra, haveria uma oportunidade de se tornar já com status avançado e benefícios disponíveis sem precisar dedicar tempo para isso. Mas haveria um preço.

4) Uma outra mudança de paradigma que poderia ser aplicada é a limitação do número de membros. Atualmente, de forma geral, os programas de fidelidade não têm limite, pelo contrário, quanto mais pessoas tiver melhor. Porém, a ideia de escassez sempre aumenta o valor do produto e isto poderia ser testado neste caso, mesmo que tal escassez seja aplicada a apenas algumas categorias especiais.

5) Assim como o título de membro, os benefícios deste programa de fidelidade também poderiam ser NFTs. A lógica é a mesma: se eu fiz por merecer estes benefícios, eu deveria ser dono de cada um e, como tal, poderia fazer o que quiser com eles. Eu poderia usá-los imediatamente, poderia comercializá-los com quem tiver interesse ou poderia guardá-los para decidir depois. Gosto de trazer exemplos do futebol neste caso. Digamos que eu seja sócio torcedor do clube X e por isso eu tenha conquistado o direito a, por exemplo, visitar o Centro de Treinamento. Mas e se eu, por qualquer que seja o motivo, não quiser ir, por que não posso encontrar alguém interessado em pagar para ir em meu lugar? O mesmo poderia ser aplicado para outras coisas, como ingressos, camisas autografadas, encontro com atletas… Adotar esta prática seria também mais um atrativo para o membro, que poderia monetizar sua participação; seria uma fonte de receita extra para o programa, com os royalties do mercado secundário; e abriria a chance de quem não quer participar diretamente, mas tem interesse em usufruir de benefícios específicos, poder pagar por isso.

6) Aqui vale falar rapidamente sobre o mercado secundário, que poderia ser interno, controlado pelo dono do programa, mas até por acesso a liquidez deveria se abrir a comercialização dos ativos em marketplaces de terceiros, o que já seria feito automaticamente caso carteiras não custodiadas fossem liberadas.

7) Quando o assunto é web3 o foco geralmente está nos NFTs, mas existe outro elemento que pode ser muito poderoso, especialmente se aplicado junto aos tokens não-fungíveis: os social tokens. Estes tokens fungíveis têm sido usados por algumas DAOs e criadores de conteúdo como uma espécie de moeda para premiar aqueles fãs e participantes mais fiéis e que mais contribuem, criando assim comunidades e uma economia própria dentro delas. Em posse destes tokens, as pessoas podem trocar por experiências e benefícios especiais. Muitos programas de fidelidade hoje são regidos por pontos, mas quem os possui ou os usa ou os acumula sem ter o que fazer. Ao serem social tokens, estes pontos poderiam ser comercializados como ativos digitais, permitindo que quem acumulou possa vender e quem não tem possa comprar diretamente entre si. Os próprios administradores do programa poderiam comercializar estes social tokens com membros e não membros. Lógico que quanto mais complexo o uso, maior seria a necessidade de se ter especialistas para desenhar um tokenomics sustentável. Os pontos dos programas atuais não necessitam ter este cuidado, justamente por não terem valor monetário. Porém, seria mais uma oportunidade de monetização para os responsáveis e para os participantes.

8) É possível pensar ainda em outros elementos, como NFTs de certificados de participação intransferíveis para atestar a presença em determinados eventos ou o cumprimento de certos objetivos, o que deixaria o programa mais robusto, porém mais complexo ao usuário final.

Tudo que foi escrito aqui, repito, é um exercício de imaginação de como a web3 pode tornar clubes de membros em geral mais atrativos para todas as partes. Atualmente, a ideia de usar NFTs e social tokens dessa maneira já é amplamente falada e até aplicada em alguns casos, porém de forma ainda bem tímida e experimental, o que é normal. Como falei anteriormente, ainda existem barreiras tecnológicas, regulatórias e de entrada para as pessoas comuns para que algo mais completo seja implementado. Até por isso, não necessariamente tudo precisaria ser adotado de uma vez; poderiam ser aplicações graduais, conforme o entendimento fosse aumentando. Ou o que, inclusive, seria mais prudente: começar pequeno, em menor escala, com um grupo controlado, para depois expandir para um número maior de pessoas. De qualquer maneira quis trazer aqui algumas possibilidades e provocar uma discussão sobre o tema, afinal é assim que evoluímos e crescemos.

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