Quando a web3 não é para muitos e (um pouquinho de) fricção não é um problema
Steve Johnson
Steve Johnson

A web3 ainda está em fase de muitas opiniões e poucas certezas, mas duas destas certezas parecem ser unanimidades no meio: a primeira é que devemos buscar a massificação, atrair o máximo de pessoas possível; a segunda é que, para fazê-lo, precisamos eliminar por completo toda e qualquer fricção da experiência do usuário. Mas será que isto se aplica a tudo que está sendo construído?

Uma das coisas que mais gosto de fazer é trocar ideias; é uma maneira que encontro de conectar pontos na cabeça entre as várias informações que absorvo ao ler artigos, livros, ouvir podcasts… Esta semana, conversando com o amigo Bruno Maia sobre aplicações de web3, surgiu um assunto interessante, sobre tokens serem os novos likes. Na hora lembrei de um artigo que li, do Denis Nazarov, intitulado “Collect is the new like”. Nele, autor escreve uma frase que para mim resume toda a essência do texto: “em um mundo no qual os likes perderam qualquer tipo de sinceridade, colecionar demonstra um apoio verdadeiro”. Denis quer dizer que, atualmente, o ato de curtir uma publicação perdeu o significado, já que as pessoas praticamente curtem qualquer coisa, muitas vezes até sem ver o que. E isto acontece basicamente por três motivos: por ser algo gratuito, não escasso (não existe limitação no número de likes que posso dar) e muito fácil de ser feito. Não é necessário pensar, é quase que um ato de impulso, automático. A própria UI do feed das redes sociais contribui. Por conta disso, este tipo de interação tem sido cada vez menos relevante a não ser em rankings de métricas de vaidade.

O ato de colecionar, ou seja, obter um NFT representando um post ou algum tipo de conteúdo, por dar um pouco mais de trabalho, mesmo que ainda de forma gratuita, demonstra algo muito mais significativo. Se for pago então, ainda que em valores simbólicos, é ainda mais. E é a partir desta constatação que vem o primeiro questionamento: será que eliminar toda e qualquer fricção da experiência do usuário é o caminho para todas as aplicações de web3? Na minha visão, não! Claro, se estamos falando de aplicações que têm competidores consolidados, é necessário no mínimo igualar a experiência e eliminar a fricção. Empresas de venda de ingressos em blockchain são um desses exemplos. Se elas querem competir com os players tradicionais do mercado, os usuários precisam ter uma experiência idêntica ou melhor do que estão acostumados, senão já era. Mas se estamos falando de aplicações com outras propostas de valor, a fricção zero não é fundamental. Óbvio que não estamos falando de exigir a criação de uma carteira de custódia própria, com todos os seus passos, além da conversão de moeda fiduciária em cripto, taxas de gás e tudo mais. Não! Mas um pouquinho de fricção pode não só não fazer mal, como ser de grande valia.

Para explicar essa teoria, entro no segundo questionamento: todas as aplicações de web3 necessariamente devem ser de massa? Na minha opinião, não! Vejam bem, não estou dizendo que a web3 não deve ser acessível para todos. Claro que deve ser. Estou dizendo que determinadas aplicações de web3 — especialmente as que não competem diretamente contra rivais da web2 oferecendo serviços semelhantes — não terão milhares, muitos milhares ou milhões de usuários, porque não precisam. Simplesmente porque a proposta de valor não é falar para muitos e ganhar no volume; é falar para menos pessoas e ganhar na qualidade.

Eis aqui um ponto nevrálgico: web2 e web3 são complementares, não substitutas. Não é necessário abandonar a primeira para entrar na segunda justamente porque elas servem a propósitos diferentes. Quer alcance e números absolutos? Web2. Quer relacionamento próximo e criação de comunidade? Web3. Então, se as plataformas de web2 já fazem este trabalho de se comunicar com a massa muito bem, para que usar a web3 para o mesmo fim? É como dar tiro de canhão para matar uma formiga.

Voltemos ao primeiro ponto. Se há um mínimo de fricção, a interação torna-se mais trabalhosa, logo, ao fazê-la, parte-se do princípio de que a pessoa de fato está interessada nesta interação, pois precisará dedicar um certo esforço para tal. Então, é como se tal fricção exercesse um papel de curadoria: falo para menos gente, mas falo com gente muito mais engajada. Um exemplo claro acontece na música. Tenho colecionado alguns NFTs de músicas e os artistas seguem subindo seus trabalhos no Spotify. Porém, lançam os tokens como colecionáveis para entender quem é fã de fato e seu grau de fanatismo.

O Avenged Sevenfold, uma banda de rock, está criando algo muito foda, uma espécie de fã clube em web3. Recentemente, eles lançaram o TicketPass, um NFT Open Edition gratuito, que qualquer um pode resgatar. Basta entrar em avengedsevenfold.io, conectar a carteira, dar email e nome, e pronto. Com ele, as pessoas poderão ter acesso prioritário a compra de ingressos para os shows da turnê nos EUA. Porém, o TicketPass é apenas a porta de entrada, o nível 1 deste fã clube. A partir de agora, o Avenged Sevenfold começará a gamificar a jornada dos seus fãs. Então, por exemplo, os produtos oficiais da banda, inclusive CDs e vinis, virão com chips NFC, que, quando escaneados, permitirão o resgate de NFTs representando-os; haverá distribuição de POAPs (certificados “proof of attendance”) em todos os shows e outros eventos; airdrop para os top listeners no Spotify; e mais ações adicionadas ao longo do tempo. Cada ação evoluirá o TicketPass, criando diferentes níveis do fã clube, separando os fãs de acordo com a dedicação e ofertando-os benefícios de acordo com estes níveis.

Por que é muito foda? Porque cria-se uma pirâmide (com todo o cuidado que usar esta palavra no universo de web3 requer hehe) dividindo as pessoas em tiers. No tier zero, a base da pirâmide, temos todos que interagem com a banda da forma mais sem fricção possível, nas redes sociais e plataformas de streaming; aqueles que desejam iniciar uma relação um pouco mais próxima, resgatam um NFT gratuito que marca o início desta relação, o começo da construção de um CRM. Como o resgate demanda um mínimo de fricção, a grande maioria das pessoas não irá participar, pois a relação superficial da web2 já atende, é o suficiente; depois, vão se criando novos tiers de acordo com as atividades dos fãs, onde quem mais interage, mais se dedica, mais vantagens e prioridades ganha, afinal, mostra que é mais fanático do que os outros. É uma excelente maneira de fazer uma curadoria e entender exatamente cada tipo de fã, além de ser uma forma de “desfinancializar” a relação, uma vez que não basta ter dinheiro, é preciso ter tempo.

Tempo, aliás, é um dos grandes diferenciais na comparação web2 e web3. Explico. Tempo é um recurso finito, é talvez a única coisa que iguale os seres humanos, independentemente da idade, naturalidade, cor, classe social… Todos temos 24 horas por dia. E se web3 é sobre relacionamento mais profundo, sobre comunidade, onde a exigência para se entregar mais é muito maior, em todas as direções, é simplesmente impossível ter relações assim com tudo que você interage. Na verdade, as pessoas querem manter a maioria de suas relações as mais superficiais possíveis, porque o contrário dá trabalho: “te sigo, curto as coisas que você faz, mas não quero ir para uma comunidade, não quero ter este contato mais direto, diário, não quero me sentir parte, dar opinião, debater com outras pessoas que pensam como eu. Quero consumir algo rápido e pular para a próxima”. E isso as plataformas de web2 já entregam muito bem.

Por tudo isso, talvez seja hora das marcas e criadores, nativos e não-nativos da terceira geração da internet, olharem para a web3 de uma maneira diferente. Não usá-la para falar com milhões, para isso já existem as redes sociais; e sim usá-la para curar relações mais significativas e, por isso, mais duradouras (e monetizáveis, por que não?). É apostar na qualidade e não na quantidade. A proposta de valor para muitas aplicações de web3 está aí.

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