Um guia para o financiamento quadrático #1

Obras de capa: Jogando Capoeira/ Favela, 1965, Heitor dos Prazeres

I. Introdução

O Financiamento Quadrático é um mecanismo matematicamente ótimo para financiar bens públicos em uma comunidade de forma democrática.

🤷🏽‍♂️ Porque?

A tomada da decisão sobre para onde vai o dinheiro não é de quem contribuiu com mais recursos, mas sim do quanto maior é o número de pessoas que escolheram apoiar o mesmo projeto.

👨‍🏫 O que é financiamento quadrático?

Você pode encontrar uma explicação mais aprofundada do conceito de financiamento quadrático aqui.

O conceito foi amplamente discutido por:

Zoë Hitzig, economista
E. Glen Weyl, economista
Vitalik Buterin, fundador do Ethereum

A ideia do guia não é se prender a fórmula, mas na intuição econômica por trás do mecanismo.

💡 A lógica de um fundo de contrapartida

A lógica de um fundo de contrapartida normal, como podemos chamar, é bastante simples:

Vamos supor que existam três projetos a, b e c.

1. Fonte: Zoë Hitzig, Plurality Research Network Conference
1. Fonte: Zoë Hitzig, Plurality Research Network Conference
  • Os indivíduos fazem contribuições monetárias para esses projetos, talvez as pessoas doem um real, cinco reais ou cem reais para cada projeto.

  • Em seguida, o patrocinador chega e iguala os fundos em uma proporção acordada anteriormente.

  • O interessante de pensar sobre essa lógica de fundo de contrapartida é até onde vai o dinheiro do patrocinador?

Portanto, em um match funding, obtemos uma alocação de recursos públicos ou recursos de patrocinadores que se parece com isso:

2. Fonte: Zoë Hitzig, Plurality Research Network Conference
2. Fonte: Zoë Hitzig, Plurality Research Network Conference
  • A maior quantidade dos fundos, nesse caso, foi para o projeto C, que também recebeu o maior valor monetário de contribuições aqui.

🍂 O que o financiamento quadrático muda?

Muda a lógica de um fundo de contrapartida ou combina a lógica de um matching pool com a lógica de votação quadrática para tornar o financiamento de bens públicos mais democrático.

3. Fonte: Zoë Hitzig, Plurality Research Network Conference
3. Fonte: Zoë Hitzig, Plurality Research Network Conference
  • Não apenas o valor monetário das contribuições para cada projeto, mas também recompensando o número de contribuintes para cada projeto
4. Fonte: Zoë Hitzig, Plurality Research Network Conference
4. Fonte: Zoë Hitzig, Plurality Research Network Conference

A intuição do que a fórmula diz é que o financiamento total para cada projeto deve ser o quadrado da soma das raízes quadradas das contribuições individuais.

Quando removemos as contribuições individuais, vemos a distribuição dos fundos públicos serem concedidas ao projeto A, que teve uma maior base de apoio democrático, e o projeto C que teve apenas um contribuinte, não recebe nenhum recurso do fundo público.

5. Fonte: Zoë Hitzig, Plurality Research Network Conference
5. Fonte: Zoë Hitzig, Plurality Research Network Conference

Então, o que vemos é que o financiamento quadrático incentiva não apenas a quantidade de contribuições para cada projeto, mas também o número de contribuintes.

A razão pela qual isso é tão importante é: porque você não tem um sistema de correspondência baseado em um real-um voto

6. Tradução de Quadratic Funding: Past, Present, Future, Connor O'Day
6. Tradução de Quadratic Funding: Past, Present, Future, Connor O'Day

Em vez disso, você tem:

  • a capacidade dos doadores individuais de sinalizar seu interesse em um determinado projeto

  • se o projeto for interessante e envolver mais pessoas

  • maior o valor correspondente

  • aumenta o valor disponível para o projeto

A ideia principal: É uma maneira ótima, tanto economicamente quanto democraticamente, de financiar bens públicos

É interessante porque: O objetivo é não somente habilitar as pessoas a expressar suas preferências, mas também a intensidade de suas preferências.

🕵🏽‍♂️ O que estamos tentando descobrir?

Como fazer as pessoas construírem e financiarem coisas que estão em seu interesse de longo prazo ou no interesse de longo prazo da comunidade, mas não necessariamente em seu interesse imediato. Ver Bentoism.

🆘 Como o financiamento quadrático ajuda?

  • garantindo que as pessoas pensem sobre o tipo de benefício desproporcional que podem ter ao financiar bens públicos

  • As pessoas realmente pensarem em seus interesses, no contexto de terem uma voz no financiamento de bens públicos.

  • Realinha incentivos para dar dinheiro de uma forma mais democrática, incentivos em uma perspectiva “bottom-up”

II. Por que bens públicos?

Um bem público é um bem que é tanto não excludente quanto não rival, ou seja, os indivíduos não podem ser excluídos de seu uso, e o uso por um indivíduo não reduz a disponibilidade para os outros.

Para ilustrar a diferença entre bens públicos e outros bens, como bens comuns, privados ou de clube, vamos dar uma olhada em alguns exemplos.

Todos os bens podem ser classificados quanto à sua exclusibilidade e rivalidade.

7. Definição dos Bens
7. Definição dos Bens

Os Bens Privados são coisas que uma pessoa ou grupo pode excluí-lo

  • Se for de propriedade de uma empresa

  • Se for de propriedade de um indivíduo

  • se não estiver disposta a pagar por ele

Eles podem decidir que não querem que você faça parte disso. Quando se trata de bens que são excludentes e não rivais, acabamos com bens de clube, como cinemas, parques privados, streaming pago, etc.

O fato de você não conseguir controlar quem tem acesso ou não, significa que não existe beneficio pessoal para alguém que decida contribuir ativamente para o bem público, exceto se escolhe doar, ou se tornar voluntário, assim você gera um incentivo porque se você doa uma soma de dinheiro para um projeto público, você tem um aumento na chance daquele projeto ser financiado ou se torna um voluntário, você aumenta a qualidade desse projeto ao ser financiado, mesmo que pequena.

Os Bens públicos não são excluíveis, ou seja você não pode realmente impedir alguém de se envolver

  • Respirar ar limpo ou usar estradas e parques públicos

🔑 O ponto chave a ser observado é que existem versões públicas e privadas de muitas dessas coisas.

Outra coisa a se observar é que existe essa ideia de coisas serem escassas ou serem abertas, então não há escassez de ar limpo, pelo menos em certas partes do mundo, se você estiver nessa parte do mundo, terá acesso a ar limpo.

Não é a mesmo com os recursos naturais, como peixes, madeira, carvão ou petróleo, a natureza se esgota.

Portanto, quando você pode esgotar coisas, quando você pode usar demais, você encontra a tragédia dos comuns.

  • vemos com a poluição

  • vemos com as mudanças climáticas e destruição da natureza

  • vemos com o que muitas pessoas chamam de “capitalismo de vigilância”, onde as pessoas não têm controle sobre seus dados ou como gerenciam seus fundos, como gerenciam qualquer tipo de bem digital.

🐑 Tragédia dos Comuns

A tragédia dos comuns é um dos problemas que o financiamento quadrático busca resolver

A tragédia dos comuns, uma parábola apresentada em 1968 pelo ecologista Garrett Hardin, ele argumentava que nos tempos antigos havia um espaço comum que pertencia a todos, a todas as pessoas da vila. O espaço comum são terras utilizadas coletivamente para todos deixarem o suas ovelhas pastar.

A questão é que se todos enviarem suas ovelhas para pastar, então o espaço comum será completamente inutilizável para qualquer um, porque será totalmente utilizado.

“Todo mundo precisa de um farol no porto para sinalizar aos barcos o caminho de volta, mas, ao mesmo tempo, ninguém quer assumir a responsabilidade de construir o farol.” Zoë Hitzig

Ou seja quando todos agem em seu próprio interesse, espaço em comum é útil para ninguém.

Isso acontece quando a contribuição individual para um bem público tem preferência apenas se houver beneficio próprio em detrimento de um grupo.

Mas se as pessoas apenas contarem os benefícios individuais, então todo mundo contribui menos do que poderia contribuir para os benefícios coletivos. Quem perde é a inteligência coletiva.

O financiamento quadrático é basicamente sobre compensar os efeitos da tragédia dos comuns por meio de uma alocação para um fundo de subsídio, com base em quanto cada pessoa pode contribuir.

🔗 O tecido que conecta

Os bens públicos são importantes porque eles são o tecido que conecta as pessoas na sociedade. Ao contrário de bens individuais, como carros ou celulares, eles são consumidos coletivamente.

O conhecimento, arte e cultura também são considerados bens públicos. Eles não podem ser excluídos e seu compartilhamento beneficia a sociedade como um todo.

A questão do financiamento e da alocação dos bens públicos é complexa. Por exemplo, temos um sistema de tributação, parlamentares e representantes públicos, na democracia representativa, que decidem quais bens públicos merecem ser financiados. No entanto, esses sistemas podem ter limitações, pois nem sempre refletem as necessidades e preferências das pessoas comuns.

É importante buscar maneiras mais inclusivas de alocar recursos para os bens públicos como Instituições que permitam a participação direta das pessoas na tomada de decisões. O financiamento quadrático pode ser a solução para a democracia participativa, na qual a sinalização das preferências individuais dos projetos em que os indivíduos querem financiar agora são consideradas em tempo real. Esse mecanismo é fundamental para determinar quais bens públicos devem ser financiados.

Em resumo, os bens públicos são essenciais porque conectam as pessoas e proporcionam valor coletivo. Eles incluem não apenas recursos tangíveis, mas também conhecimento e cultura. Para garantir uma distribuição justa desses bens, é necessário buscar formas mais democráticas de financiamento e alocação, levando em conta as preferências individuais.

Como nos beneficiamos e valorizamos as coisas que realmente são importantes para nós? Mas que não estão em nosso interesse de curto prazo focar e que podem ser facilmente negligenciadas ou dominadas se não tivermos cuidado?

A ideia de um fundo de contrapartida é um exemplo para entender como responder essa pergunta. No vídeo, Zoë Hitzig fala brevemente sobre um episódio histórico do primeiro uso de um fundo de contrapartida nos EUA e sua importância na teoria econômica.

🏥 Primeiro uso de um fundo de contrapartida

O primeiro uso registrado de um fundo de contrapartida nos EUA para financiar o bem público foi para fundar o primeiro hospital público na nação, o Hospital da Pensilvânia.

O ano era 1751, a Filadélfia era a cidade de crescimento mais rápido das 13 colônias. Essa explosão populacional tornou a cidade um terreno fértil para a morte e doenças.

Uma pequena comunidade de cidadãos preocupados se reuniu e redigiu uma petição, que eles levaram à Assembleia da Pensilvânia, o órgão governante da colônia à época, pedindo fundos do Tesouro para estabelecer um hospital público no qual qualquer pessoa pudesse receber atendimento totalmente gratuito.

Essa proposta foi imediatamente rejeitada pela Assembleia da Pensilvânia e encontrou forte resistência dos membros da assembleia que representavam os distritos rurais da Pensilvânia, pois esses membros da assembleia diziam que esse hospital serviria apenas as pessoas que vivem na cidade e não vejo por que precisamos dedicar fundos do Tesouro para esse tipo de bem público. Mas, felizmente, o hospital público tinha um apoiador muito influente na Assembleia da Pensilvânia, que era Benjamin Franklin.

Benjamin Franklin encontrou uma solução inteligente para contornar esse impasse político. Ele propôs à Assembleia da Pensilvânia:

“Se eu puder arrecadar duas mil libras de cidadãos privados, certamente o Tesouro pode igualar essas duas mil libras, que era uma grande quantia na época, com 2.000 libras dos fundos do Tesouro.”

Surpreendentemente, a Assembleia da Pensilvânia concordou com esse acordo, e Franklin rapidamente levantou os fundos e até arrecadou mais do que o necessário. Apenas quatro anos depois, o primeiro hospital público da nação foi construído.

Refletindo sobre sua habilidade política, Benjamin Franklin disse uma vez: “Não me lembro de nenhuma das minhas manobras políticas cujo sucesso tenha me dado na época mais prazer”.

O que ele observou foram esses dois problemas fundamentais com o financiamento de bens públicos, especialmente aqueles de alto valor para pequenas comunidades, os bens públicos que são de certa forma novos, como um hospital público nas colônias em 1751.

🤨 Por que sua comunidade deveria usar financiamento quadrático?

A ideia que o financiamento quadrático apresenta é realmente cativante, porque é uma das poucas coisas por aí que realmente fala sobre como podemos, sem um órgão centralizado ou comitê para fazer com que as pessoas participem desse processo e estejam realmente engajadas em seus interesses de longo prazo e em suas comunidades de longo prazo.

Uma forma comum de financiar bens públicos em uma comunidade é com comitê de doações. Os comitês de doações, avaliadores de projetos para edital, concursos, campanhas coletivas com apoio de patrocinador privado. Um grupo de pessoas que decidem quem vai receber o prêmio.

No entanto, o controle e a responsabilidade estão na mão do conselho. Muitas das vezes com sobrecarga de trabalho para revisar, debater os méritos das inscrições dos projetos, bem como o trabalho, quase impossível, para reunir as informações suficientes, para que tenham certeza o que é o melhor para toda a comunidade. A partir do planejamento central é difícil a alocação de recursos.

No financiamento quadrático, as decisões de alocação emergem das preferências de membros da comunidade, portanto o financiamento quadrático tem baixa sobrecarga de coordenação, porque não há nenhum comitê necessário.

  • reflete as necessidade de toda a comunidade porque o financiamento quadrático reúne informações de todos os contribuintes

III. Financiamento quadrático e projetos de regeneração

Ao longo do texto busco trazer um guia sobre o financiamento quadrático no sentido de nos levar para o financiamento de projetos de regeneração.

Existe o coletivo que tece nossas relações, algo comum que conecta a todos nós. Elementos compartilhados que unem nossa sociedade. É preciso que haja um senso de coletividade entre as pessoas. E são coisas boas, geram boas externalidades, são difíceis de financiar. Todos querem seus benefícios, mas difícil financiar contribuições.

Podemos pensar em crise globais, aparentemente sem solução, que precisam de incentivos para coordenar soluções. O financiamento de projeto que ataquem problemas como: mudanças climáticas, políticas públicas culturais, projetos de regeneração locais como limpeza de praia e economia circular com o resíduo plástico.

Certo? Todos gostaríamos de encontrar uma praia limpa, dar um mergulho em uma água limpa, respirar um ar limpo, encontrar música, teatro, arte e dança em espaços públicos, ou até mesmo transformar os resíduos plástico em novos negócios.

Porém muitas das vezes encontramos a praia suja, falta de incentivos a artistas iniciantes e o descarte incorreto do resíduo plástico.

Como sociedade gostaríamos de ver mais projetos e iniciativas que financiem mais a proteção das nossas praias, dados transparentes sobre a poluição do marinha, que financiem a cultura, etc. Que ajudem a financiar esses bens públicos.

Diante a experiência de protocolos como Gitcoin e clr.fund, é essencial buscar mecanismos de incentivos e estabelecer conexões locais para solucionar problemas de coordenação colaborativamente.

Os mecanismos de financiamento como matching funding, doações, filantropia, editais, que considero como mecanismos tradicionais. Os Patrocinadores doam o dinheiro, as pessoas inscrevem projetos, pessoas podem doar para esses projetos, quanto mais fundos angariados para um determinado projeto, maior é a contrapartida doada por esse patrocinador.

Nesse caso, como você sinaliza as preferências de um grupo?

E como você garante que esse sinal de preferência seja ótimo, ou seja significativo, para ele e para a comunidade?

Como usar essa informação não apenas para distribuir fundos, mas para as pessoas tomarem decisões?

O financiamento quadrático distribui esses fundos democraticamente, ao considerar o fundo de contrapartida de um lado, um determinado período de tempo para o projeto rodar, e quando concluída a rodada, do outro lado temos uma quantidade de doações, um mapa das preferências de uma determinada comunidade.

Muita das vezes sabemos a urgência que uma obra têm em uma comunidade, e sabemos como a população gostaria de alocar suas preferências, mas não há coordenação entre essas preferências e os recursos.

Imagine que você tenha uma praia suja, e você gostaria de fazer uma limpeza de praia, pessoas já gostariam de ajudar na limpeza de praia e você gostaria de criar uma comunidade para atacar esse problema mais a longo prazo.

Você pode buscar financiamento para essa sua ideia. Os doadores locais, as associações, as fundações, um órgão de meio ambiente. Você pode criar um financiamento coletivo, buscar alguma empresa interessada em limpeza de praia gostaria de doar. E hoje você pode criar um projeto em um protocolo de financiamento quadrático.

No financiamento quadrático podemos criar projetos que ataquem problemas globais como mudanças climáticas. Sabemos que o problema da mudança climática vai afetar as pessoas em regiões mais pobres, problema que ficou conhecido como guerra climática.

Precisamos de fazer mais agora para contornar essa situação, porém é preciso mecanismos de coordenação. Pessoas já estão perdendo suas casas, por morarem em áreas mais afetadas pelo aumento de chuvas, ou o aumento do nível d’água.

A questão é como coordenar, utilizar a inteligência coletiva, e encontrar a melhor forma de resolver esse problema?

Ao invés de incentivar grandes instituições, grandes doadores, que por mais que sejam altruístas e doem de acordo suas preferências, devemos coletivamente decidir sobre um problema de baixo para cima, envolvendo a participação ativa da comunidade e das pessoas afetadas.

📚 Notas

Esse ensaio é um registro de 6 meses de pesquisa sobre os aspectos econômicos do financiamento quadrático

Seu apoio, sugestão, comentário são muito bem-vindos.

Muito obrigado pela leitura. Esse guia faz parte da Regen Guide Writers Cohort da GreenPill.network x Taptive

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