Athos - Capítulo #5/5

Dia 4 – O retorno (04.06.12)

Sou acordado por alguns sons. Alguém já se mantém ocupado na tarefa de arrumar os seus pertences.
Não identifico a pessoa. Passa pouco das 5:00 e apenas tenho de estar perto do heliporto pelas 6:45, para apanhar o autocarro.
Posso optar por rebolar um pouco mais na cama, tendo eventualmente mais uns intermédios de sono.
Sento-me na cama e penso mais um pouco. Este acto já mostra, inconscientemente, a vontade de me levantar em definitivo.
Adapto a visão, estou perto da janela, mas grande parte da sala está mais escura. São todos os austríacos e não apenas um deles que se despacham.

Começo eu também, lentamente, a minha arrumação e mudança de roupa.
Não tenho a pressa deles por ir viajar confortavelmente de autocarro ao invés de ter de me apressar a pé com destino a um porto de mar. Sempre poupo a possível confusão que será o uso da casa de banho, quando todos começarem a acordar.

Demoro poucos minutos a arrumar o pouco que tenho fora da mala e saio de botas na mão, ainda antes de alguns deles.
O sol já ilumina sobejamente o pátio interno do mosteiro, onde os aposentos estão localizados.
Somos os únicos ali, não há sinais de mais alguém estar a pé por estes lados, mas ignoro o que se passará noutros locais do complexo.

Mentalmente faço uma pequena revisão dos últimos dias e é com um sentimento misto de alívio e tristeza que faço notar um facto óbvio: hoje é o último dia desta aventura.
O jantar poderá ser tardio, mas tem destino a mais de 400 Km dali, numa pátria emprestada e junto da família.
O facto de nunca sermos livres de raízes tem as suas vantagens: a saudade que se instala e nos faz regressar à rotina reconfortante, por um lado, e entediante, quando se prolonga demasiado.

Já estamos todos de mochilas depositadas sobre um banco corrido, a comer o que cada um chamará pequeno-almoço para si.
A primeira refeição oficial começará bem depois da hora de saída de grande parte das pessoas.
Uma barra de cereais, uma sanduíche improvisada ou simplesmente um sumo servem de consolo a qualquer estômago que enverede por estas aventuras. A frugalidade alimentícia é uma constante para quem se aventura por aqui.

Os momentos de convívio são breves; a pressa deles é evidente e contrasta com a minha calma.
Vou estar regido por horários impostos e não por um ritmo de caminhada próprio. Sairei daqui no autocarro em que me inscrevi. Terei nova ligação em Keyres em hora ainda desconhecida e barco em Dafni para o “exterior” às 12:15.
Só a partir daí serei de novo refém dos ritmos próprios de condução, adicionados aos limites legais de velocidade.

Dá-se um adeus temporário após a saída do portão. Fico pelo miradouro e os austríacos seguem pelo caminho por onde cheguei ontem. Mais um começo da infindável migração diária de pessoas.
Julgo que o isolamento aparente em que vivem estes monges seja, na verdade, uma falsidade.
Contactam diariamente com mais pessoas do que eu. O fim da entrada “massiva” de visitantes resultaria num desafio interessante para esta comunidade.

Enquanto admiro o nascer do sol, não demora muito a que se juntem mais pessoas. A grande maioria terá como objectivo o mesmo que eu, outros simplesmente já devem ter consumido as horas de sono necessárias e repõem aqui os níveis de nicotina.

O tempo passa aos solavancos, conforme sou abstraído do mesmo, ou meço o passar dos minutos.
Acabo por estar um pouco agitado internamente neste último dia, pelo facto de ter horários a cumprir.
Ainda longe da hora de partir, decido-me pela aproximação ao local designado. Aí encontro apenas um mini “bus” para apenas 12 passageiros, quantidade mais do que insuficiente para o número de pessoas inscritas.

Volto a ser surpreendido por animais à solta. Desta vez não estão no meio do meu caminho. Neste lado da península existe muito espaço para todos.

Mala na bagageira e lugar escolhido, começam a chegar outros passageiros, assim como mais mini “buses”; mais 5, segundo consigo apurar. A capacidade pode não ser totalmente preenchida, mas chegará para levar cerca de 60 peregrinos pelas estradas que se estendem do lado Este da península.
A confusão é grande, não há critério no autocarro a escolher e alguns acabam por entrar e sair, dado o seu preenchimento total.

Os bilhetes são cobrados sem recibo e a marcha inicia-se por uma estrada, que rapidamente se transforma em terra batida e tem uma configuração sinuosa e inclinada.
Está para os carros como os trilhos estão para as pessoas. Pequenas partes feitas em cimento substituem a terra em locais onde a passagem de água é permanente, ou plausível; de resto, existe um balouçar constante da cabina, o que obriga a muito equilíbrio por parte dos ocupantes.

Vou fazendo um percurso imaginário a pé, como a visualizar o que seria fazer esta etapa pelos meus próprios pés.
A dificuldade seria média, mas o tempo demasiado grande para o meio-dia de que disponho. Seria possível apenas utilizando um dia inteiro e escolhendo um mosteiro para pernoitar pelo caminho.
Faço, mentalmente, uma curva no próximo entroncamento, mas o carro vira na outra direcção.
Se viesse a pé nem teria consultado o mapa, para mim era óbvio o caminho a tomar. Pouco depois, chegamos a um beco sem saída onde um dos outros autocarros já se encontra quase pronto a partir de novo.

Afinal, trata-se apenas de um desvio, tendo como finalidade a saída de alguém, ou outra necessidade logística.
O único monge que se faz transportar connosco, levanta-se de imediato após a abertura da porta e o comentário feito ao dinamarquês atrás de mim é revelador da razão da paragem. “Holy water”, de Athanassis.

Não é todos os dias que tenho uma oportunidade de beber água sagrada. Saio com uma das garrafas na mão e vou despejando o seu pouco conteúdo para dar lugar a outro idêntico, mas de valor muito superior.

O local é pequeno, mas está arranjado. Não existe uma fonte propriamente dita, mas apenas um pequeno ribeiro fornecido através de um tipo de cascata.
Os recipientes são cheios através da imersão e alguns ainda se dirigem a uma pequena capela adjacente para alguns momentos de introspecção.

Observo os movimentos e o local. Vou bebericando na água, que se revela bem mais fresca do que a que tinha antes.
A visita é curta, talvez para dar lugar ao outro autocarro já a chegar e somos chamados a entrar de novo no veículo já apontado na direcção de saída.

Todos nos seus respectivos lugares, resumimos o caminho e avançamos por onde eu tinha jurado antes ser o caminho certo.
Passamos numa subida íngreme e vemos uns burros montados por duas personagens.

Cumprimentos são trocados pelos respectivos condutores motorizados e animais, prosseguido o caminho de uma forma nada monótona entre paisagens cada vez mais reveladoras de pequenas belezas.

Uma delas começa a apresentar-se ao longe, tratando-se de um mosteiro.
Trata-se de Iviron, que está praticamente ao nível do mar, à excepção de uma pequena elevação do terreno.

Paramos junto do mesmo, onde estão imensas pessoas que parecem esperar a sua vez para seguirem. No nosso autocarro, apenas haverá duas vagas após as respectivas saídas, pelo que fica muita gente apeada.

Não demorou muito a inflectir a rota para a parte interior. O mar sai definitivamente de linha de vista e a subida mostra já pequenas casas isoladas, que rodeiam as curvas.
Adensa-se a malha urbana, sem deixar de ser esparsa, só havendo uma continuidade de edifícios ao entrarmos em Karyes.

Um largo de empedrado vai abrigando os pequenos autocarros estacionados em espinha e as pequenas e poucas lojas vão começando a receber o amontoado de gente que vai chegando.
Informo-me do próximo passo a tomar. Há um autocarro cerca das 11 e picos, talvez 11 e 10, segundo me tentam informar com mais precisão.
O bilhete é comprado dentro do mesmo, pelo que não há necessidade de me dirigir e nenhum local específico para me munir do título de transporte.

Não há muito por onde vaguear, facto já presente no mapa detalhado da cidade, por isso dirijo-me a uma das duas mercearias.
Uma garrafa de vinho e outra do licor Chiporo fazem parte do que pretendo levar para casa.

Para além disto, uma lata de um tipo de café e na falta de algo parecido com uma sanduíche, opto por umas barras de sésamo com mel. A primeira refeição paga que tenho por estas paragens.

Enquanto me dedico a saborear, em especial o café, vou reparando em muitas caras já familiares.
O dinamarquês aproxima-se sem intenção definida; vai ainda no segundo dia e não sabe para onde se dirigir.
Entrego-lhe todo o material impresso que trouxe sobre o local. Distâncias e tempos estimados entre os vários locais, números de telefone, etc.
Seria a última vez que o via, após nos despedirmos com desejos mútuos de boa sorte.

O Thomas e companhia também assentam arraiais bem perto e cumprimentamo-nos tal qual amigos de longa data.
Entro de novo para comprar um expresso frio em lata, pois ficou um desejo de mais após o término da “refeição”.

Deixo a mochila entregue a si própria, confiante da segurança do local e da honestidade das pessoas presentes.
Em poucos minutos percorro a única rua, para além do largo, que se pode ver nesta terra. Os correios estão fechados, pelo que enviar um postal daqui seria impossível.

Sem mais por onde vaguear, junto-me de novo ao grupo do Thomas e as conversas vão surgindo por si.
Passo a conhecer outro membro do grupo pelo nome: Yoni. É inglês e amigo de longa data do Thomas. Finalmente percebo a razão do uso da língua de Shakespeare nalgumas conversas.
Falamos do eremita romeno, da maneira estranha como se comporta e de muitas mais peculiaridades interessantes.
Fico a saber que o monge e o companheiro que subiram ao Monte Athos para lá ficarem uma temporada eram ucranianos e que durante a missa derrubaram o candelabro das velas, tendo criado uma perfeita confusão.
Sou presenteado com um vídeo onde se vê o feito e rimo-nos todos.

Mostro algumas fotos da minha estadia. Numa delas está o Thomas a falar com o “homem da fita azul no cabelo”.
Fala sobre ele, supostamente uma lenda para muitos dos que aqui vêm. Já viveu uns anos isolado numa caverna algures.
Uma das ocupações que tem é apanhar cogumelos, actividade em que é muito bom e que tive oportunidade de confirmar, através de um saco de plástico que carregava a mercadoria.

Alguém menciona um café quente, mas ninguém se mexe. A ideia, no entanto, fica-me no âmago.
Um café quente seria algo para reforçar a cafeína fria que já ingeri hoje.
Sou arrastado pelo continuar da conversa. A família do Thomas é dona de um dos hotéis em Ouranopoli, um dos únicos dignos desse nome, ao contrário da “pensão” onde fiquei.
Convida-me a ficar lá da próxima vez, um convite sincero, mas com certeza a troco da normal taxa a pagar.

  • “Não sei se volto algum dia” – respondo.

  • “Ninguém vem apenas uma vez a Monte Athos” – vaticina ele.

O café não me sai da cabeça, preciso que entre pela boca.
Questiono o Yoni, que parece tão impaciente por um como eu, mas não toma nenhuma iniciativa.
A conversa avança para a subida ao monte e a sua dificuldade.

  • “Foi duro, mas não particularmente complicado, excepto pelo peso da mala” - digo eu.

O Thomas também é praticante de corrida, mais particularmente de montanha.
Atualmente pratica menos essa modalidade pelos problemas que tem no joelho. No dia de anos decidiu ir correr 17 Km para celebrar.

  • “Acham-me maluco, diz ele” – como o compreendo, penso eu.

Questiono sobre as fronteiras. Dois muros, um de cada lado, e trajectos praticamente impossíveis fazem o resto, sou informado.
Resumo depois o meu percurso e como se foi formando o plano ao longo do caminho. Ficam espantados por não ter marcado nada em Lavra.

  • “Tiveste bastante sorte” - diz o Thomas - “Todos eles requerem marcação, nem que seja um telefonema no dia anterior.” A sorte protege os audazes!

O café! Digo ao Yoni que vou e junta-se a mim, mas avisando não ter dinheiro algum. Convido-o a aceitar um café da minha parte; julgo que já tinha assumido isso de qualquer forma.

O “restaurante” é único na península e, não sendo hotel, intitula-se como tal, é o único sítio que tem alguns quartos para alugar.

Constituído por duas salas, somos rapidamente encaminhados para aquela onde as mesas se encontram, deixando o balcão e os atarefados produtores de cafés e bebidas similares nas suas tarefas.

O Thomas junta-se a nós e recusa partilhar um café, mas alimenta a conversa já começada.

Fala-se do serão que passaram ontem com um dos monges. A conversa é apelidada de “fascista” pelo Yoni e de “teoria da conspiração” pelo Thomas.
Pormenores quanto ao conteúdo não são dados, mas o Thomas foi severamente admoestado, pois andava a fazer perguntas sobre um suposto túmulo templário por aqueles lados.
Assuntos dos quais se deveriam afastar, segundo o monge.

Ele ficava chocado sempre que se confrontava com este tipo de atitudes. Diz ainda que o “homem da fita azul no cabelo” se chateou ontem, tendo saído da igreja, pois não gostava de ser mandado fazer o que não queria e retirou-se.

Para ele, o que interessa é a busca da verdade e, nas viagens que teve, já se cruzou com pessoas de várias religiões e sempre tentou perceber os outros pontos de vista e passar o seu, sem nunca ter tido nenhum problema.
Assuntos a aprofundar numa segunda vinda, caso tal exista.

Aproxima-se a hora do transporte que vai para Dafni. É o único trajecto feito por autocarros dos grandes, mas o número de pessoas presentes no local parece superior à oferta de lugares.

O trajecto é curto. Em linha recta seriam cerca de 4 Km e sempre a descer.
O tempo de viagem deverá ser pouco, pelo que ainda me espera algum tempo para tentar comprar algo em Dafni. Tenho em mente uns doces parecidos com os fornecidos nos mosteiros.

Avanço para o autocarro recém-chegado. No meio da confusão coloco a mochila na bagageira e tomo um assento à janela.
Já se vêem pessoas em pé e ainda restam muitas pessoas lá fora; entre elas vejo o Thomas, que parece estar à minha procura.
Confirmo, fazendo sinal e recebo uma resposta gestual, explicando que irão num próximo autocarro dali a 10 minutos.

A viagem inicia-se, junto com uma melancolia crescente, difícil de descrever. Sou arrancado da mesma por pequenos actos do quotidiano, como a compra do bilhete ou um marco de relevo na paisagem, que são poucos neste trajecto.
Pouco mais à frente um mosteiro, o que fica mais perto de Dafni, e… juraria que eram os cavalos que vi pela manhã, mas não seria possível já estarem aqui.

O bilhete é cobrado à moda antiga por um rapaz que se desloca pelo autocarro, balançando ao ritmo da ondulação da estrada de terra batida.
Desta vez há recibo, que guardo junto dos restantes papéis que venho coleccionando.

Uma pequena paragem deixa o cobrador apeado no meio do nada. Possivelmente vai entrar num segundo autocarro, necessário para trazer as restantes pessoas e proceder aí à respectiva tarefa.

Dafni começa a querer aparecer na minha linha de vista. Vai dando notícias a cada curva e conforme a visibilidade entre a vegetação o permite.

Hoje é o dia dos transportes e o próximo será a derradeira viagem de retorno ao “exterior”. Até lá, ainda falta mais de uma hora, mas pouco mais existe para desfrutar.
A saída do autocarro é feita de forma ordeira e a minha mochila já se encontra encostada junto à chapa do veículo. Tinha sido colocada por cima de outras que os donos já haviam reclamado para si.

Dirijo-me de imediato para o “guichet” da compra dos bilhetes para o ferry. Tal como na entrada, este é o derradeiro papel que me separa da saída.
Seria possível não conseguir bilhete? O que se passaria nesse caso?
Decido nem questionar muito e faço-me parte de uma fila pouco extensa, mas um pouco caótica.
A falta de bilhetes, ou mesmo a perda do ferry por incompatibilidade horária, resultariam numa possível ida por outro meio menos convencional e sobretudo mais caro.

De bilhete já na mão, o ambiente apresenta-se agora de uma forma mais ligeira. Acabou a pouca sensação de stress que se consegue ter por aqui.
Numa das únicas duas lojas que existem, descarrego a mochila à entrada e entro nos corredores apertados, em busca dos doces que pretendia levar. Deles nem sinal, apenas mel, artigos de cheiro, muitos livros e gravuras, entre outras bugigangas à espera de serem compradas.
Reparo nalgumas t-shirts, mas os tamanhos disponíveis são todos muito grandes para presentear os miúdos.

Compro um casaco de “trekking” com o símbolo de Monte Athos e ficam por aqui as recordações físicas com que me vou embora.

Deambulo um pouco mais pelo local sem destino certo. Os correios aqui também se encontram fechados hoje, ou pelo menos a esta hora. Fiz a opção certa ao enviar a missiva postal ao meu irmão assim que cá cheguei.

Vejo uma cara conhecida a vaguear perdida pela única rua existente. O Christos, com quem bebi o Chiporo, anda meio perdido por ali. Faço sinal e sorri, perguntando-me de novo o nome.
Vai para Kayres, mas não percebo o porquê. Por onde tem andado, também é resposta que não se consegue perceber. Precisa de 10 euros, quer dar-me os contactos para depois me pagar.
Entrego-lhe uma nota, sem querer ficar com nenhum contacto, pois não conto ficar mais pobre e nem acredito que me venha a pagar alguma coisa.
Despede-se e dirige-se para o autocarro que acabou de chegar.
Este traz o resto das pessoas e, entre elas, o Thomas e companhia.

A confusão adensa-se nas caixas para vendas dos bilhetes. O caos é total.
A chegada do recente autocarro é quase coincidente com o pequeno ferry que traz pessoas vindas de outros sítios da península.

Quem já ali estava parece também acordar para a necessidade de estar munido de um bilhete.
O que poderia ter sido feito de uma forma faseada concentra-se agora num pequeno espaço temporal e de terreno. Não existem condições para filas grandes, pelo que se forma um cone de gente junto ao sítio onde fica também a entrada para a alfândega, local por onde vou ter de passar em breve.

O ferry de saída está agora a encostar ao porto e a descarregar quem apenas aqui vem para trazer mercadoria ou iniciar um ciclo semelhante ao meu.

Faço menção ao Thomas para ir para a fila. Não tem bilhetes ainda; um colega está na mole de gente, que luta por um lugar à boca de um dos dois “guichets” disponíveis.

Faço-me ao desafio, com alívio por não ter de estar na luta para os bilhetes. Tenho de passar junto a essa confusão, sobre a direita, para conseguir entrar na pequena alfândega e a tarefa não é fácil.

Avisto os austríacos, a meio de algo que dificilmente se pode chamar de filas. Trocamos umas breves palavras, ficando eu a saber terem chegado ao barco apenas cinco minutos antes da partida.
Imagino que os últimos quilómetros tenham sido uma corrida contra o tempo.
Do “guichet” alguém pergunta quem tem reservas e um deles levanta o braço, tentando passar à frente de quem por ali se encontra.
Dou entrada na pequena casinha, a pensar que realmente existem pessoas que têm tudo controlado ao milímetro. Iam dar-se mal em Portugal.

As pessoas caminham devagar por entre as muitas mochilas que ocupam parte do chão; alguns são chamados a mostrar as bagagens já no pátio exterior, antes da entrada, e eu passo à frente, mostrando apenas o bilhete. Não me pedem mais nada. Podia ter ficado mais uns dias que ninguém ia reparar.
O ferry já me é familiar e subo directamente para o topo. Quero ficar virado para a costa, pelo que já só me restam lugares ao sol.

Resta agora esperar pelo barulho dos motores e o movimento do barco, o que não demora muito. No que respeita a horários de transporte, as coisas são eficientes e com pouca margem de erro, para quem pretenda usá-los
Identifico o Thomas e o Yoni ainda no sítio onde os deixei. Possivelmente não conseguiram bilhete, no meio daquela confusão toda.
Talvez nunca venha a saber realmente o que aconteceu. No entanto, deixei o meu contacto de e-mail com o Thomas que, para além do monge romeno, foi a única pessoa que ficou com capacidade de contacto futuro. Uma linha muito ténue que pode não dar em nada.

Inicia-se o trajecto inverso ao que fiz no primeiro dia. Vou vendo as mesmas paisagens e mosteiros de uma perspectiva diferente.
Já saí de terra. A próxima vez que o fizer já não será aqui, mas terei já saído? Tal como na entrada, decido que tem de haver um momento simbólico para tal.
É arriscado, mas vou tentar perceber onde fica a fronteira deste território e a saída será no cruzar dessa linha imaginária projectada no mar.

Olho para trás e lá se encontra o famoso pico.

Sobressai do resto, tal como a ponta de um icebergue; uma boa analogia, para o conhecimento com que fiquei do local.
Talvez até demasiado generosa, dado que do “icebergue” se consegue apenas ver 10% e deste local fiquei muito mais pela rama.
A língua fez parte da barreira, os objectivos traçados também. Foi mais uma viagem dentro de mim do que propriamente uma incursão nos segredos e costumes aqui guardados. Foi o primeiro mergulho na água fria de uma praia, com um retorno rápido ao calor do ar, para depois iniciar, então, o “banho” tão desejado.
Começa já a surgir a vontade de voltar noutras circunstâncias. Mergulho dado, seria o próximo, um “nadar” por estas águas de mistério.
Vaticinava o Thomas um retorno e talvez ele faça parte da próxima vinda.
Pareceu-me interessado e sapiente o suficiente sobre o local, mas com a devida distância quanto ao sectarismo em que roçavam muitos dos outros.

Avisto o “homem da fita azul”. É mesmo a sua imagem de marca e talvez durma com ela.

Roubo uma fotografia da personagem para constar das minhas memórias. Que histórias esconderá ele e cada uma das pessoas aqui presentes? Como seria o relato escrito por cada um de nós neste barco? Quatro dias passados aqui seriam relatados de formas tão distintas, que pareceriam não estar em nada relacionados. Cada pessoa encerra em si um universo completo…

Um pequeno barco de pesca passa ao largo com a sua cauda de gaivotas sempre presente. Os ex-peregrinos começam a fazer uso do que restou da viagem, fazendo a delícia dos pássaros e proporcionando alguns momentos de observação e fotografia.

A algazarra típica que acompanha estes bandos intensifica-se com a chegada de cada vez mais elementos.
Começa a vislumbrar-se Ouronopoli e tento perceber onde se fará a separação. Certezas não posso ter, mas identifico o local mais provável para me despedir.
Um muro junto de uma última casa parece ser o ponto de separação. Tem todas as características para preencher os requisitos. O primeiro muro que vejo na costa e a última casa que poderia estar presente em qualquer dos portos que vi, tanto no estilo, como na parca conservação.
A próxima casa já tem aspecto de turismo e a praia já se faz apresentar com alguns banhistas.

Cruzo a derradeira fronteira e passo a sentir-me de novo regressado ao mundo onde normalmente vivo, onde diariamente passo os dias de forma monótona, mais ou menos contínua, ainda que pautados por pequenas ilhas de diferença, facto que aprecio muito.

A torre bizantina aumenta cada vez mais o seu tamanho relativo e roda para nos mostrar de novo a face que deverá estar visível ao desembarcar.
O acostamento e desembarque faz-se de seguida e sigo pontão acima sem paragens. Urge saber se o carro está intacto no local onde foi largado.

Uma fina camada de poeira cobre o veículo, que responde à abertura com o seu distinto apito. Da bagageira aberta, sai uma lufada de ar quente que empalidece o calor que se faz sentir cá fora.
Estou a pouco tempo de iniciar a viagem de volta. Resta-me uma refeição com prémio e meio de subsistência para a viagem.
Fico bem mais aliviado sem a mochila e com uns sapatos mais leves, rumando rua abaixo em direcção ao restaurante que tenho em mente, perto do hotel onde fiquei e longe da confusão que se sente no pontão.

Olho para o menu e apetece-me um pouco de tudo, mas terei de refrear esta vontade. Teria tendência para pedir mais do que consigo comer e um estômago demasiado cheio não é amigo do condutor.
Não resisto, no entanto, em pedir um jarro de vinho e arenque de entrada; uma promessa feita no topo do Monte Athos.
O empregado pergunta-me de onde sou e, depois da resposta, aconselha-me a trocar o tipo de acepipe escolhido. É muito salgado, diz ele.
Com um sorriso nos lábios, digo saber exactamente o que é e que definitivamente o quero.

Peço ainda uma dose de feijões feitos à moda de “qualquer coisa” e mexilhões com molho de tomate. Fico na dúvida sobre as quantidades mas vêm a revelar-se mais do que suficientes. O pão também ajuda.

Procuro o mar através da semi-penumbra aparente, por estar numa esplanada coberta.
A beleza continua a fazer parte do local, agora com olhos mais de turista de veraneio do que de peregrino.
Reparo conscientemente, pela primeira vez, que existem mulheres no local. Existiam antes, já as tinha visto, mas só agora o facto se torna parte da realidade pensada. Faço questão de registar o acontecimento através de uma fotografia, sem que tal possa levantar suspeitas, uma coisa a que já me habituei.

Termino a refeição com um café, mais uma vez por conta da casa e atravesso a rua para fazer uso do WC, no corpo principal do restaurante.
Não esperava uma coisa destas, mas também não me espanta em nada: nas paredes, vários ícones com referência a Monte Athos, Entre eles, uma pintura da península em modo de mapa e uma representação quase fotográfica de cada um dos 20 mosteiros.
É com a reportagem fotográfica de mais estes dados, que me dirijo para o carro, com a finalidade de deixar para trás esta etapa da minha vida.

O GPS indica 415 Km até ao destino, em cerca de seis horas e meia. São 3:19, pelo que a previsão de chegada seria perto das 22:00, mas estou seguro de chegar por volta das 21:00 e poder ainda jantar com a minha família.

Não existe forma de me enganar na saída. Tirando as pequenas ruelas secundárias dentro da vila, a estrada principal é só uma e é onde desembocam todas as outras.
Não dou com uma placa toponímica de fim da povoação, mas reparo no “Alexandros Hotel” que o Thomas mencionou ser “dele”. Lembro-me de novo que ficaram em Dafni e pergunto-me o que será feito deles.

Percorro os próximos quilómetros quase solitário na estrada. Quem saiu nos autocarros já deve estar muito longe e os restantes devem sair espaçadamente, se o fizerem hoje.
Acompanho o caminho que serpenteia de volta até onde me apanhou quatro dias atrás e desemboco noutro, que fará a ligação à auto-estrada.

A saída simbólica foi feita umas horas antes, mas chega agora o momento de mentalmente fechar o relato da viagem.
Daqui em diante será apenas um repetir de movimentos automáticos de controlo do carro e uma busca incessante de sinal de rádio, por falta de antena.

Valeu a pena e valerá tantas quantas as que possa voltar. Resumo assim, da forma mais abreviada possível, quatro dias ali passados.
Não adiciono nenhuma descrição do local, mas sim um “slogan” quase publicitário.

FIM…

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