Athos - Capítulo #2/5

Dia 1 – A entrada no Monte Sagrado (01.06.12)

Acordo em Ouranopoli pelas 6:45.
Mais de seis meses após o começo da ideia, chegou finalmente o dia.
De facto, o pedido oficial foi feito a 27 de Janeiro, depois de alguma investigação que apontava para a necessidade de presença local na Grécia a fim de requerer a entrada. Mas as coisas, felizmente para mim, evoluíram facilitando em muito a epopeia.

Rezam as lendas (isto porque ninguém tem exactamente números oficiais) que apenas 140 pessoas podem entrar na ilha por dia – o que exclui monges de mosteiros exteriores que se queiram dirigir aí para qualquer efeito.
Destes, apenas dez podem ser não ortodoxos. São quatro dias de permanência possível mas, tendo em conta a realidade, são três dias completos pois, regra geral, sai-se no mesmo barco em que se chegou. Estimando por cima falamos de 450 pessoas entre as quais 30-40 da minha estirpe.

Há que fazer ainda menção ao facto de apenas homens poderem entrar na ilha. Aliás “machos” que não é nenhuma expressão para excluir ninguém mas, ao invés, incluir todos os animais do sexo masculino. Está vedada a entrada (pelo menos a controlada) a qualquer animal do sexo feminino.

Começo por rever a logística. Já tinha adicionado o precioso papel higiénico e um mapa que foi comprado quase por coincidência (valha-me o Deus Ortodoxo). De resto parece tudo controlado.

Na revisão acabo por aliviar a bagagem de alguns extras que me começam a parecer desnecessários. Retiro uma das camisolas quentes, um par de sapatos de caminhada e um guarda-chuva. Não me parece que vá chover, mesmo que chova não me estou a ver caminhar por trilhos de mochila às costas enfeitado com tal objecto em cima da cabeça.
A mochila fica um pouco mais leve mas, acima de tudo, com um aspecto menos volumoso. Tanto o peso como o volume são uma condicionante para as caminhadas.

Deixo a logística pronta e dirijo-me ao carro estacionado numa das ruas perto na esperança de ficar em boas mãos.
O senhor do hotel disse-me apenas para evitar a rua principal onde é proibido estacionar. Toda a miríade de carros que se vê nos lados das ruas são de pessoas que estão em Athos de momento.

Descarrego a mochila com o PC, os extras retirados e a roupa suja do dia anterior trancando o carro.
Volto para tomar o pequeno-almoço tendo especial cuidado em colocar a chave do carro numa bolsa que não pretendo abrir muito. Tenho receio que possa cair numa investida a material necessário.

Tenho de esperar ainda um pouco pelo pequeno-almoço numa sala onde já se juntam outras pessoas.
Estou numa mesa isolada pois todos os outros fazem parte do mesmo grupo. São muito irrequietos nunca estando todos sentados na mesa ao mesmo tempo mas conto pelo menos oito.
Na mesa em frente senta-se outra pessoa com cara de poucos amigos e corpo de pugilista reformado (conjecturas minhas)... Já perdeu a forma mas mantem o volume (que se amplia na zona abdominal, verifico mais tarde).

Chega a papinha. Pão, um tipo de queijo com mel por cima, uma omeleta simples com queijo e fiambre de lado. Deixo o fiambre no mesmo lado em que estava e como o resto com um sentimento de missão cumprida. Era o que tinha para comer e não descurei em nada a tarefa.

Peço mais um pouco de café e alguém pede permissão para se sentar na mesa. Era um russo que tinha regressado após uma permanência de três semanas. Era a quinta vez que lá ia.
Pelo que conheço do sistema deve ter ficado a maioria do tempo no mesmo mosteiro. Extensões às três noites são concedidas apenas na capital e por pouco mais tempo. Existe a possibilidade de ficar mais tempo mas apenas no mesmo mosteiro e com permissão do monge responsável, obviamente os propósitos não serão em nada turísticos.

Na conversa entabulada pelo fraco inglês dele e a minha completa ignorância de russo, para além das parecenças com o búlgaro no qual ainda só sei coisas muito básicas, consigo perceber que conhece bem o território.

Entre os fracos planos que já tinha delineado para a estadia havia um que tinha sido recentemente retirado. A subida ao Monte Athos propriamente dito, Metamorfosi Sotios na sua denominação mais local.

Tinha começado a idealizar a ida sozinho e nunca pensei nesta subida. Na altura de pedir a autorização já se tinha juntado a mim o colega de trabalho italiano que é amante das subidas a montanhas. Foi assim que este objectivo passou a constar da lista.

No passado dia 26 recebo a sua prenda de aniversário: um e-mail a informar que já não podia ir por questões profissionais. O título era desde logo sugestivo: “bye, bye Athos”. A primeira reacção foi pensar que tinha ido tudo por água abaixo.
Não demorou mais de uns minutos a concluir que tinha um plano inicial para ir sozinho e iria mantê-lo. Deixaria a subida de lado e faria o resto.

Se este colega tinha trazido para o plano a subida, haveria agora lugar para outros o reforçarem, era uma questão de abraçar a oportunidade.
Afinal é o Monte que dá nome ao território e a denominação do cume é muito apelativa. É, ainda, o tema de discussão e vanglória de muitos dos que comentam na net; daqueles que não vão lá por questões meramente religiosas, se é que existe algum interesse religioso em muitos deles.
Nas várias buscas que fiz pela net muitas incluíam a foto da praxe junto da cruz existente aos 2033 metros de altitude.

Interrogo-o sobre esta questão. É peremptório em afirmar que o devo fazer e detalha da melhor maneira que consegue fazendo uso do seu inglês para me dar as indicações que tem.
Fico curioso o suficiente para começar a pensar no assunto. Ele refere o facto de ser frio lá em cima e acrescento uma possível falta na bagagem - luvas.
Para além disso ainda me dá algumas indicações que me fazem saber ser possível cimentar um plano para a estadia completa. Acabariam por falhar logo na chegada…

Agradecimentos pelas informações, check out feito e mochila às costas, rumo em direcção ao porto de partida para levantar o “Diamoneterion” (tipo visto) e comprar o bilhete para o ferry. Apenas estas duas tarefas burocráticas me separam da possibilidade de entrada.

Foi, de facto, com algum nervosismo que entrei no local onde se levanta a permissão de entrada.
E se alguma coisa tivesse corrido mal? Respeitei todos os trâmites que incluíam a reconfirmação duas semanas antes. Houve, no entanto, alguma confusão nas últimas interacções.

O meu colega já tinha tentado uma ou outra alteração de planos, sendo sempre eu o ponto de contacto. Teria dificuldade em entrar no dia 1 por chegar nesse dia de viagem profissional.
Tentei a alteração para 2 que foi prontamente recusada. Poderíamos entrar no dia 2 mas com a saída ainda a dia 4, algo que estragava quase tudo.
Viajaríamos então de noite para não perder pitada. Tive o cuidado de reforçar que mantínhamos, então, a entrada para dia 1 não fosse haver confusão.

E se o facto de ter pedido os dois “vistos” em conjunto fosse agora impedimento para levantar apenas um?
Submerso em todas estas dúvidas chega a minha vez de mostrar o passaporte. Alguns segundos de expectativa e sou mandado avançar para trocar papel por papel – 30 euros de papel-moeda por um papel que me franquia a entrada num local sem igual.

Fiquei surpreendido pelo preço, tinha lido algures que era 35 euros para não ortodoxos mas decidi não pedir o livro de reclamações e seguir para o seguinte passo.

Apenas já munido com o bilhete de ferry na mão é que me senti sossegado o suficiente para achar que estava tudo garantido.
Iria definitivamente cumprir a última viagem/evento programada até ao início do ano. Já tinha outras coisas em mente e até uma marcação para uma viagem a Budapeste mas isto fazia parte do que considero o plano seguinte. As linhas gerais que tinha em mente depois de chegar terminavam com esta estadia.

Faltava quase uma hora para a partida. Decido ficar uns 2 euros mais leve e sento-me numa esplanada a beber um café e a observar com mais atenção o que se passa ao meu redor.
Adensa-se a malha de pessoas e a correria de carros a chegar e partir. Os monges misturados com as outras pessoas, mulheres com as famílias que parecem ter vindo acompanhar os maridos e que possivelmente por aqui ficam a fazer praia nos próximos dias.

Ainda muito antes da hora avanço pontão acima até ao ponto de embarque. O ferry ainda não se encontra atracado mas já se juntam algumas pessoas. Reparo que não estou enquadrado na figura.
Grande parte tem como bagagem uma miríade de caixas, sacos e saquetas que mais parece estarem a mudar de casa com os poucos haveres que conseguiram levar numa saída de urgência.
Outros transportam um pequeno saco como quem leva umas mudas de roupa para se instalar num hotel. Sou o único que se faz apresentar com uma mochila para a transportar às costas.

O barco chega e desembarcam alguns carros e pessoas. Estranhamente existem mulheres! Pensava que não se podiam aproximar a menos de 500 metros da linha de costa, razão pela qual existem umas viagens noutros barcos que circundam a península sempre ao largo.

Um dos trabalhadores do barco, impecavelmente vestido, está cá fora e é abordado por uma mulher que, pela pronúncia, é italiana.
Procura saber informações sobre o barco recém-chegado. É informada que não pode entrar, está vedado a mulheres. Só aí, ao tentar perceber, vejo que a trajectória do barco indicava ter vindo do lado direito, sendo Monte Athos para a esquerda. Estava resolvido o mistério.
A senhora indigna-se e o homem percebe que ela pretende fazer o tour à volta e que agora até isso lhe é vedado. É informada que é simplesmente o barco errado, existe outro já no porto para o efeito pretendido.

Existem várias maneiras legais para entrar na península, todas por mar e basicamente todas para os mesmos sítios. Resumem-se a entrar por Ouranopoli ou Lerissos.
Lerissos é o melhor ponto para quem quer deixar família, pois tem condições turísticas mais refinadas.

A ligação é, no entanto, feita por um barco para poucas pessoas requerendo marcação prévia sujeita à respectiva disponibilidade. Nas informações que li existe ainda o risco de a polícia marítima interditar a navegação pois essa parte do mar tem tendência para águas muito perigosas.

A ligação mais comum é mesmo este ferry de grande capacidade que sai diariamente às 9:45 com chegada a Dafni por volta das 12:00 e passagem por alguns mosteiros ou acessos aos mesmos.
Faz o retorno por volta das 12:15 com o trajecto inverso e terminando por aí a ligação principal diária.
Existe também o speed boat, que mais uma vez requer reserva atempada e ainda um tipo de táxis marítimos extremamente caros.

Para quem queira ganhar algum tempo, existe um ferry às 6:00 directo a Dafni. Vedado a muitos como eu pois a permissão de entrada pode ser levantada das 8:00 às 14:00 o que implica chegar muito cedo no dia anterior.

Dá-se início à entrada. Afunilo na multidão munido de bilhete na mão e mochila às costas. Reparo que todos levam a permissão de entrada na mão. Faz sentido; se verificassem apenas em Dafni atrasariam o desembarque e arriscavam-se a transportar quem não deviam.

Com alguma dificuldade retiro a mochila e faço-me pronto para mostrar também o meu documento à autoridade de serviço.
Já estamos em fila única com pouco espaço, quando reparo noutro pormenor: apresentam também um documento de identificação. No meu caso teria de ser o passaporte pois é o número referência que está descrito na permissão de entrada. Terei de esperar para o retirar pois aqui, definitivamente, não existem condições para voltar a remover a mochila das costas.
Chega a minha vez, para testar o sistema apresento apenas o bilhete e a autorização. Nota-se uma certa procura de algo mais nas minha mãos para se entreter na comparação necessária. Vendo que nada mais tenho com que se entreter, manda-me avançar. Não deveria querer atrasar o embarque e sigo caminho. Concluo que é possível entrar com uma autorização alheia.

Subo ao topo e procuro sentar-me junto ao lado que suponho vir a ter vista para a costa, sendo bem sucedido nesta pequena decisão.

As cadeiras estão dispostas de maneira convencional, bancos irradiando perpendicularmente aos lados ficando costas com costas com os detrás e frontalmente com os da dianteira.
Ao meu lado e nos bancos em frente senta-se um grupo de 4 pessoas. Parecem estrangeiros e revelam-se imediatamente nas primeiras palavras, falam alemão.

Se até agora eu parecia o profissional de hiking a bordo do barco, passei a ser um menino de coro comparando a preparação logística destes senhores. Hiking Sticks, sacos de cama e as mochilas equipadas exteriormente com tanta coisa que ainda pensei não haver nada para levarem lá dentro.
Depressa me tiram as dúvidas. Um deles abre um dos compartimentos e retira um protector solar. Boa! Mais um artigo em falta na minha lista.

Meto conversa e pergunto de onde são. Áustria. Mostram as bandeiras nas mochilas. Fazem questão de não serem confundidos com alemães. Afinal estamos no meio da crise e GEuro já é um termo em uso.

Subiram ao Monte há quatro anos atrás e incentivam-me a fazê-lo. Uma experiência para a vida. Avisam, no entanto, que é duro e que devo fazer uma primeira incursão até ao abrigo nos 1600 m deixando o resto para o dia seguinte, sem levar a mochila que devo recolher do abrigo no caminho de volta.

Vão sair na primeira paragem para atravessarem directamente para o lado Este da ilha, zona que ainda não conhecem.
Mencionam qualquer coisa sobre um mosteiro que foi palco de “war zone”, expressão que usam.
Não fixo o nome, mas falam do facto de quando um mosteiro não tem monges suficientes, algum dos outros o reclama como seu e tomam-no pela força.
Factos que ocorrem neste caso com recurso inclusive a tiroteios, segundo me deixam saber.
Talvez seja algo do passado, não quero acreditar que tal seja prática comum hoje em dia. Mencionam, ainda, que tem um sinal na porta que diz “Orthodox or Death”.

Continuo a conversa maioritariamente com um deles, mas existem algumas intervenções de outros que ajudam a elucidar alguma dúvida que tenha.
Uma delas prende-se com o tempo de subida ao topo. Não sabem dizer exactamente, enganaram-se no caminho e percorreram uma grande distância desnecessária.

Descrevo o plano que se começou a formar na minha mente e conseguem aferir a possibilidade de algumas partes.
Vamos ficar no mesmo mosteiro na última noite ou, pelo menos, é o plano que temos. Já têm tudo preparado ao milímetro. Vão voltar a Dafni de barco no último dia, ideia que não me agrada muito pela repetição, em direcção oposta ao percurso que tenciono fazer na ida.
Seria por mar, teria acesso visual a aspectos que não vou ver por terra, mas grande parte será algo que já terá sido visionado por mim nessa altura.

Questiono um facto que o russo me tinha falado. Autocarros para Karyes, a capital. Negam a existência dos mesmos.
Pena, tinha-me agradado a ideia de percorrer o lado Este da Ilha, ainda que de carro, e também visitar a capital.
Talvez os acompanhe no barco se nos encontrarmos em Lavras, o mosteiro que tencionamos usar para a última noite.

Como bom português só marquei uma noite e apenas por uma razão. O mosteiro onde planeava ficar é dos que fazem parte de uma lista que requer marcação (por fax ou telefone) com antecedência de 2 semanas. Optei pelo fax através de um template disponibilizado num site e recebi uma nega alegando que estavam a renovar as guest houses.

Mudei os planos para outro. Não requeria marcação mas, para não ter grandes surpresas, fiz a reserva de qualquer modo. Alguns dias depois recebo uma chamada telefónica a confirmar a possibilidade.
Fiquei-me por aqui no que se refere a planeamento. No local teria de aferir as possibilidade e respectivas acções a tomar, como já o estava a fazer neste momento.

O austríaco disse-me que a opção involuntária foi boa, não conhece o Dionysiou, mosteiro para onde vou agora e que foi a segunda opção, mas sabem uma coisa: o Grigoriou mantém os peregrinos a dormir fora do mosteiro não havendo possibilidade de tanto convívio.

Última dica antes de chegar ao ponto de saída deles. Nunca uses “Hi” ou “Hello” para cumprimentá-los, diz ele. Talvez um “Hey Brô” seja apropriado, penso eu sem verbalizar o pensamento, talvez não achem graça ou nem percebam.

Consulta algo, afere a pronúncia com um amigo e diz-me “Evlogite”. É o que se deve utilizar. Significa “Dê-me a sua Bênção”, reforça.
Anoto na língua pátria algo que se assemelhe com o que ouvi e, por momentos, tento uma mnemónica que me faça recordar a bendita (literalmente) expressão. Facto que passado minutos vejo ter falhado.

Aproximação à primeira acostagem a terra. Acostagem é certamente o termo. O ferry desce o passadiço e acelera moderadamente para se manter apoiado no pontão de cimento. Tempo suficiente para entrada e saída de passageiros sem mais delonga.

Separo-me dos austríacos mas nada nesta vida é definitivo ainda mais quando existe um plano ainda que ténue de reencontro programado.

Retomo o pensamento sobre a subida ao topo dos 2033 metros que passou a figurar em definitivo no plano ainda em materialização. Imagino a sensação de chegar lá acima mas não consigo alimentar a ideia com mais nada por falta de conhecimento de causa sobre o assunto.

Concentro-me temporariamente na realidade a decorrer sobre o meu olhar e mais de uma centena de ocupantes da embarcação.
Tento captar em fotografia as várias paisagens naturais e humanizadas da costa percorrida. A concorrência para o efeito é de monta, com muito fotógrafo amador munido de equipamentos dignos de um profissional.
Continuo adepto da máxima que a melhor câmara fotográfica é aquela que se tem à mão e prossigo o registo munido apenas de um telemóvel que, banindo a modéstia das suas qualidades, publicita HD no bordo da ocular.
Os resultados serão certamente diferentes (para me abster de referir inferiores), mas a vitória moral será tanto maior quanto a possibilidade de poder dizer que, infelizmente, a realidade se mostrava muito superior ao que foi captado pelo zingarelho electrónico.

O advento da fotografia electrónica associado à possibilidade de armazenamento e partilha electrónica veio criar uma nova vaga de fotógrafos de algibeira que registam tudo o que parece relevante… sou candidato a presidente de uma possível associação sem fins lucrativos.

Uma estranha sensação percorre o meu ser. Estou prestes a iniciar uma viagem muito esperada e ainda é incerto se já começou ou se está para começar. Decido de modo unilateral para com o universo inteiro que apenas começa quando puser pela primeira vez o pé em terra, decido-me no entanto que a bota será o suficiente.

Pela amostra que já tive oportunidade de ver, ninguém olharia sequer duas vezes se me descalçasse à chegada a Dafni, nem sequer se saísse descalço do ferry.
Ninguém não é verdade, eu acharia muito estranho e, por isso, redefino ligeiramente o momento simbólico de entrada. A primeira passada no território mas em terra firme.

O tempo é uma entidade muito relativa. Fala-se do tempo psicológico e a teoria da relatividade restrita veio ainda acrescentar outros factores mais mensuráveis à questão. Estou no entanto a viajar praticamente a altitude zero e a velocidade muito baixa pelo que se pode aplicar a versão simplificada de física de Newton que invalida esse tipo de distorções temporais. Na realidade a velocidade mede-se aqui em nós e não deve incluir o que tenho no estômago, o que é pena pois sempre faria o barco deslocar-se um pouco mais rápido.

Entre paragens e avanços chega finalmente a hora tanto esperada. Será obviamente algo que fará apenas sentido para mim e terei dificuldade em me lembrar do mesmo no futuro, vaticino eu. Que coisa tão importante terá o acto de sair duma embarcação?

O barco aproxima-se do porto com um cuidado maior do que nas paragens anteriores.
Será uma paragem mais prolongada, com saída de um magote de gente e veículos com posterior renovação de stock humano e veículos de combustão interna.
O ferry, apesar da denominação, serve essencialmente para o transporte de homens (não necessito de usar H ou pessoas pelas razões já antes apontadas), visto que apenas são permitidos veículos ditos profissionais; ninguém entra com um carro como quem vai dar uma volta ali e já volta.

Apercebo-me de uns elementos que ao longe fazem lembrar marines americanos.
Começo a pensar que haverá verificações adicionais, mas tal revela-se falso quando se dá o desembarque.
Sai tudo ordeiramente mas com uma pressa contida como quem vai apanhar um avião mas tem de manter um postura digna de uma música de Sting.

Eu próprio não consigo decidir se estou com pressa ou não.
Acabo de entrar num dos territórios supostamente mais fechados do planeta mas ainda mantenho uma relação muito íntima com o relógio.

Lembro-me do livro “Papalagui” e da definição que tinha do homem ocidental, algo como: “Tem no pulso um objecto que mede uma coisa chamada tempo atrás de que corre sempre e nunca tem.”
Não me arrisco a usar “sic” na expressão acima, deverá ser muito diferente na sua escrita, mas tenho esperança que transmita mensagem similar.

Tento andar mais devagar, não fisicamente, mas mentalmente.
Páro, olho em volta e faço um ponto de situação.
Estou em Dafni, tenho o objectivo de chegar hoje a caminhar até um determinado sítio.
Uns minutos não são um problema nesta situação, não obstante o árduo caminho que tenho de percorrer.

Não é difícil fazer o reconhecimento da área, em especial depois de grande parte das pessoas ter desaparecido para o que parece ser a ligação por autocarro para Karyes.
O serviço de fronteiras, duas lojas, um café, um posto de polícia e a estação de correios constituem o burgo nas suas partes catalogáveis.
Para além disso, uns edifícios indistintos e o que parece ser uma pequena igreja rodeada por uns edifícios satélite.

Entro nos CTT locais, após compra de um postal ilustrado, para riscar da lista uma promessa ao meu irmão Jorge. Escrevo pouca coisa como é meu hábito, mas neste caso justificado pelo facto de não ter muito a relatar. Estou apenas a salvaguardar o facto de o futuro ser incerto no que toca a futuras possibilidades de usufruir deste serviço.

Não consigo sair, sou incitado a entregar o postal já selado ao diligente empregado. Normalmente faço questão de o colocar no marco do correio mas não estou para me ver “grego” a tentar explicar as razões.

Dever cumprido no plano de promessas a terceiros e não havendo segundos pela desistência forçada do italiano, vou directo ao café a fim de satisfazer a primeira pessoa. Um café e um folhado cilíndrico de queijo servem o propósito de almoço.

Inicio-me então na busca da estrada que deveria palmilhar, mas não dou com ela. Dou mais uma volta e não há sinais do início da mesma.

Páro na polícia para questionar o paradeiro da mesma e já pronto para reportar o seu desaparecimento. É efectivamente na direcção que pensava, o que não me espanta, se Karyes é para um lado, o caminho que procuro tem de ser para o outro.

  • É por aqui o caminho para o mosteiro Dionysiou? - questiono.

A resposta que recebo não é muito elucidativa e muito menos incentivadora.

  • Não o faria, é muito difícil - afirma.

Questionado sobre a estimativa de tempo responde que nunca o fez. Que bom exemplo! Fala do que não conhece como se fosse um mestre na matéria.

Procuro informações sobre o mesmo tema numa das lojas, sendo de novo confrontado com a dificuldade e o desconhecimento do assunto, inclusive do suposto início do caminho. Recebo a sugestão de apanhar o mini-ferry prestes a partir. Os bilhetes são comprados lá dentro.

Sem grande tempo para decisões é o que faço. Embarco pouco antes da partida com um sentimento de semi-derrota e sento-me no interior, num banco em forma de U e junto de uma janela. As fotografias não ficarão grande coisa mas começo a ficar desanimado e preciso de refazer ideias.
Inicia-se o movimento e mais pessoas juntam-se ao pequeno número que soma o universo dos já sentados.
Junto a mim, quatro gregos mais um monge compõem o que resta de banco e mes

a.

Estou ali de corpo presente; o espírito vagueia algures. Não poderá estar muito longe, as fronteiras aqui são bem controladas e acredito que, dada a sacralidade do local, serão mais restritas para o espírito do que para o corpo.

Está, no entanto, longe o suficiente para se aperceber apenas à terceira ou quarta vez que a expressão repetida em tom crescente se dirigia a ele, fazendo uma entrada rápida no palco para fixar à sua frente, na diagonal da mesa, o monge de mão estendida com algo embrulhado em plástico transparente. “Glad” como diria eu, usando uma marca para me referir a um artigo, à semelhança de “Gillete” ou “Kispo”.

De mão a meia haste, como que hesitante com o que fazer com ela, explico que não falo grego. Assumo sempre que será a melhor maneira de tentar centrar a conversa no inglês não tendo a certeza da língua nativa dos outros. Seria também verdade dizer que não falo turco, alemão ou outra língua estranha no meu fraco rol linguístico, mas grego parece-me a melhor opção nesta terra.

“Sweet” atalha um dos gregos, todos eles já de alguma idade. Teriam todos certamente idade para serem meus pais. Não o meu pai, que já conta 82 anos de vivência, facto que não reconheço em nenhum deles; talvez no monge.
O braço continua o seu percurso para aceitar a oferta num movimento que daria a um existencialista como Jean Paul Sartre matéria para um livro inteiro.
Estava de facto a ter o primeiro contacto com um monge!

Decido desde logo provar aquilo que parece ser um doce tipo turco com frutas cristalizadas. Não estou ciente de protocolos para esta situação e neste enclave do globo, mas assumo que seria uma boa maneira de agradecer a oferta e, desde já, ter um contacto íntimo com algo local.

A conversa entre os gregos e o monge continua; não percebo quase nada. Saber grego é de facto uma mais valia para captar a essência do local, nem que seja pela escuta passiva das conversas que se desenrolam ao nosso redor, mas não tenho essa sorte.

Reconheço falarem do Canadá mas não o motivo da referência e apercebo-me que de seguida tentam explicar ao monge onde fica.
Os seus límpidos olhos azuis que contrastam com o cabelo e a barba há muito não cortados, escondem sinais de ter percebido, mas tão pouco de ficar com dúvidas.
Acho impressionante que as expressões faciais quase nunca façam mexer as várias rugas da sua cara. Enquanto ouvinte pouco mais mexe do que a cabeça e os olhos.

O grego ao meu lado mete conversa com um inglês razoável. Pretende saber de onde sou.
A conversa entre eles pára e todos esperam a minha resposta.
Portugal, sai da minha boca e é rapidamente transformada na repetição quase colectiva, “Portugália!”.
“Same financial turmoil”, diz ele, limitando-me eu a sorrir e a acenar que sim com a cabeça.
Alguém explica agora ao monge onde é Portugal. Vai ter de fazer recurso ao conhecimento de geografia para, um após outro, referir todos os países da Grécia até Portugal.

A conversa avança com assuntos de pouco interesse, mas entre trocas dos destinos de cada um ficamos cientes de ir para o mesmo mosteiro passar a noite.

Peço licença para sair, quero ir lá fora tirar umas fotografias e, por algum tempo, vagueio na zona exterior do barco.

Paramos em Grigoriou, onde entram e saem peregrinos. O Mosteiro é alto, mais em edifício propriamente dito do que na altitude em que começa. Umas casas à esquerda, junto ao porto, são efectivamente as Guest Houses para onde vejo dirigirem-se os recém saídos. Estava confirmada a informação dos austríacos, não é a melhor opção para contacto com a vida monástica.

A próxima paragem será onde ficarei. Espero uns momentos para observar o mosteiro na saída do barco antes de me dirigir para junto da mochila.
Ao fundo é claramente visível o desafio para o dia seguinte: o topo do monte.

Os gregos já desapareceram e o monge senta-se agora junto de outro grupo. Não pensei explicitamente no assunto, mas julgo ter assumido que estaria com eles indo para o mesmo destino.

Já se faz fila para sair. Isto ainda é pior do que nos aviões. Para quê tanta pressa?
Será que há o risco de ficar cá dentro? De ficar sem quarto?
Decido ir pelo lado esquerdo, dado que no outro a fila já se inicia dentro da zona coberta. Revela-se efectivamente o “bombordo”, não está aqui ninguém e acabo junto à saída enquanto os gregos estão lá para trás.

Na saída vou tirando fotos e tentando perceber o que fazer a seguir. Estou a iniciar um novo momento, o de entrada e… não tenho palavras para o conceito, “check in”?

O sinal de partida já tinha sido silenciosamente dado, ninguém pára e até aceleram o passo como se houvesse classificações oficiais à chegada.
Faço-me ao caminho e, sem fazer por isso, vou ultrapassando quase todos.
A amostra existente entre todos os que vi até agora não transparece muita apetência por actividades físicas tirando o da alimentação.

Uma grande parte está em boa forma, mas uma forma redonda.
Existem alguns jovens, muitos deles devem estar na casa dos vinte, ainda assim já existem alguns a competir na relação altura/peso com alguns dos mais velhos.

Estimo estar quase no fim da subida, mas não consigo avaliar pois existem curvas que não deixam adivinhar possíveis contracurvas que acrescentem distância.
Apenas o avalio pela cota relativa em relação ao mosteiro. À minha frente apenas dois jovens. Abrando o passo para não ser o primeiro a chegar. Prefiro deixar alguém nativo de língua fazer o primeiro contacto.

Um deles chama-me a atenção pelo corte de cabelo. Quase rapado de lado mas com bastante cabelo no topo. Não é de momento o caso, mas pode ser transformado em crista muito rapidamente. Estes não vêm de certeza por motivos religiosos.

Do que me apercebi até agora, sou dos poucos que vem um pouco à descoberta do local, apreciar cultura, natureza e toda a mística do local. A maioria está aqui com propósitos muito específicos. Um pouco como as viagens de trabalho que faço e em que muitas vezes nem se conhece a cidade, a não ser numa eventual saída alargada para comer e voltar ao hotel para partir no dia seguinte.

Passa-se um portal e entra-se num pátio. Os meus “guias” dirigem-se a um monge sentado num banco de pedra e eu mantenho-me parado a alguma distância para avaliar o que vai acontecer. Não percebo nada do que falam e reparo que os restantes continuam a corrida por outro portal do lado direito. Fico mais uma vez fora da “pole position” devido a esta paragem técnica.

Incluo-me na corrente de pessoas e sigo o fluxo humano até chegarmos a um corredor acessível atrás de dois lances de escadas perpendiculares. É com bastante gosto que imito os restantes no pousar das bagagens, seguido da entrada numa pequena sala com um mesa central e bancos a toda a extensão das paredes.

Isto apenas depois de uma troca de palavras com um monge que está a efectuar a recepção.
Alto, magro (nem vale a pena referir a barba e cabelos compridos), vestido de preto, como já me habituei a ver, e uns óculos redondos para melhoria da acuidade visual.

Percebe que sou português após explicação e diz-me para continuar na sala.
As poucas palavras que verbalizou em inglês eram bastante perceptíveis, o que me agradou deveras.

Reparo nos vários ícones religiosos e na mesa de madeira maciça com dois tabuleiros e o que me pareceu uma fruteira, mas cheia com uns doces mais uma vez a lembrar as iguarias turcas.

Um dos tabuleiros está cheio de copos de água. Munido de um, dou inicio à hidratação após a subida.

No outro, pelo tamanho dos copos, será uzo. Imito os outros apenas na ingestão do líquido e não na forma abrupta como despejam o conteúdo como se estivessem estado a brindar entre amigos e alguém tivesse gritado “bota abaixo”.

Não é uzo, não tem o sabor doce que para mim chega a ser enjoativo.
Apenas um tipo de aguardente. “Spirit”, defino eu numa tradução atabalhoada para inglês… “Holy Spirit” neste caso.

Já sentado num dos poucos bancos corridos, no lado direito de quem entra, observo os que vão chegando e entram já sem malas mas em alguns casos com os “cajados” nas mãos.

Do lado oposto, uma cadeira de madeira maciça e ligeiramente mais alta do que as restantes. Possivelmente um lugar de destaque, mas que é prontamente ocupado por um dos que chegam desfazendo a magia que estava a construir em relação a tão singelo assento.

Ao meu lado acabava de se sentar o grego com quem conversei no barco. Sorri e estende-me a mão. “Paris”, diz ser o seu nome e vai apresentando os restantes amigos, dois “Apóstolos” e um “Thanassis”.
Repito sempre o meu nome, mas tenho de o voltar a dizer mais umas vezes perante as expressões inquisitivas. “Ester” fica então o meu heterónimo para estas quatro almas durante o resto do dia.

Pareço ser o único estrangeiro, ou pelo menos o único a não dominar o grego de forma a poder comunicar.
Por isso sou o único a não perceber o que vai sendo transmitido pelo monge à plateia atenta que até se vai rindo.

O ambiente é descontraído e não existe nenhuma cerimónia em especial na maneira como a interacção se desenrola.
O único facto a assinalar prende-se com a maneira como muitos deles cumprimentaram o monge à chegada. Numa ameaça eminente a irem ajoelhar-se, baixavam a cabeça e já com a mão do monge refém entre as suas, beijavam-na.
Logo de seguida deixam as ameaças de lado e benzem-se com a tradicional cruz que vai da testa ao coração passando depois pelo ombro esquerdo ao direito.
Era um acto usado em muitas ocasiões, algumas das quais não consegui perceber a razão… nunca acompanhado por qualquer palavra audível.

O monge prossegue a sua tarefa de acomodar os recém-chegados e vai fazendo umas perguntas e levando consigo grupos de pessoas.
Já restam poucos quando pergunta “Monos?”. Assumo que se refere a quem esteja sozinho, mas tento chamar a sua atenção através de uma cara que expresse dúvida e faz menção para ir com ele junto dos que já estão em pé.

Deixa-nos no corredor por uns momentos, voltando com outro monge. Dirige-me a palavra, fazendo menção ao companheiro e dizendo “very good english”.

Entregue a “novas mãos”, vou seguindo ao seu lado após indicação da direcção a tomar.

  • Católico? Pergunta ele.

Digo que sim e penso que não. A origem da palavra católico, nos meus parcos conhecimentos do assunto, deriva do grego e quer dizer universal.
Gostaria de o ser, mas nada pode ser universal quando alguns se sectarizam e deitam esta ambição por terra. Na realidade, a Igreja Católica, apesar do título, faz parte deste segundo grupo, na minha humilde opinião.

  • “Vamos à igreja…”, diz ele.

Durante umas fracções de segundo, uma miríade de pensamentos cruzam a minha mente. Como fio condutor existe a dúvida da razão pela qual temos de ir agora à igreja.
Irão proceder apenas a qualquer ritual que me permita ficar quieto, ou serei “obrigado” a algum compromisso especial?
A ideia não me agrada e não me lembro de ter lido nada sobre o assunto. Os austríacos também não me avisaram de nada.

  • “… às 16:30”, termina ele a frase com um atraso considerável.

Devia estar apenas à procura da tradução, quer linguística quer horária, para me informar do início da actividade central da existência deste lugar.
Possivelmente precisava de saber se era católico para aferir a possibilidade da minha presença no “serviço”.
Talvez se professasse outra religião, ainda que apenas pelo local de nascimento, ficasse vedado. Talvez nem estivesse aqui… boa questão, nunca me lembrei de tentar saber se permitem outras religiões supostamente não cristãs.
Parece é uma questão sem sentido e estou apenas a fazer conjecturas. No pedido enviado apenas forneci uma cópia do passaporte, sem apresentar sequer um motivo para a visita nem preencher mais nenhuma informação.

Concentro-me nas parcas indicações que me são dadas: WC à esquerda, umas portas sem legenda verbal da sua parte, mas que se dedica a verificar se estão bem fechadas. Mais à frente, na mesma linha de portas, aparentemente, indica uma porta para “shower”, fazendo uso da palavra visível na porta.
Fica de lado a hipótese de poder mergulhar num jacuzzi e relaxar um pouco.
Massagens também não parece ser “artigo” existente por aqui e penso que até seria uma boa ideia, não para hoje, mas para depois da subida ao monte.

Lembro-me de o questionar sobre esta possibilidade. O melhor, diz ele, é apanhar o ferry para Agni Anni e subir daí, onde começa o caminho.
O barco é as 8:30 ou 9:00, não tem certezas em absoluto.

Tento acompanhar o passo do anfitrião e pergunto-me se será pelo peso da mochila ou se ele realmente se move mais rápido do que o normal. Eu ando normalmente rápido, não gosto de gastar muito tempo em deslocações, mas este senhor parece ter aprimorado o hábito a um ponto que ainda não consigo almejar.

Aponta-me uma porta, ainda eu estou a uns passos de distância e já ele teve tempo para uma verificação abrindo um pouco a porta e espreitando.
Está agora virado para mim e quase nem tenho tempo de chegar… Já iniciou o caminho de volta.
Agradeço e abro a porta para ver o que me espera.

Admiro-me de ver que é um “quarto” individual. A porta abre junto da parede do lado direito de quem entra.
O movimento é feito para dentro, o que dificulta um pouco o uso do exíguo espaço existente.
A cama ocupa grande parte do espaço, apesar de ser pequena.
Uma janela exterior e uma mais pequena interior. Ambas têm uma rede fina que impede a entrada de insectos.
Nada de cortinados ou outro método para cortar a entrada de luz, apenas janelas em vidro baço que permitem, pelo menos, não ficar exposto a eventuais olhares exteriores.
A compor o já apertado espaço, existe ainda uma cadeira e uma pequena mesa-de-cabeceira. Corrijo a minha descrição do objecto, a cabeceira da cama está para o lado contrário, terá de ser uma “mesa-de-pezeira”.

Sobre a cama está uma almofada, um lençol já impecavelmente acondicionado ao colchão e outro dobrado no fundo da cama junto a uma pequena toalha.

Confere com o que li algures nas minhas parcas investigações. Não é necessário trazer estes artigos para os mosteiros pois são temporariamente cedidos, apesar de a toalha ser mais pequena do que algumas toalhas de rosto que uso e ter de servir para o banho também.

Já sentado na cama a procurar espaço para fazer a distribuição da logística necessária, procuro algo e encontro: uma tomada eléctrica.
Começo por retirar o carregador e verifico que funciona, deixando logo o telemóvel das fotografias a acumular forças para me servir de suporte de reportagem durante a minha… tenho de arranjar um nome para isto, estadia, viagem, férias, descoberta? Decido mais tarde.

Vim munido de quatro telemóveis e uma máquina fotográfica. Nem sabia se haveria cobertura, mas assumi que pelo menos seria possível enviar uns SMS’s, nem que fosse pelas ondas hertzianas chegadas do exterior.
Já tinha verificado no mapa a suposta existência de duas estações base, segundo a legenda, mas ambas longe de onde estou. A cobertura é definitivamente fraca aqui, mas dá para ir mantendo a família directa ciente de que estou bem.
A máquina fotográfica não deve gerar questões a não ser para os mais atentos que já perceberam que faço uso de um telemóvel para o efeito.
Na verdade, apenas trago a máquina fotográfica como meio auxiliar se ficar sem bateria.

Efectivamente o telemóvel que uso para fotografar é o que a empresa me forneceu, mas onde mantenho activo o meu número de Portugal e com o qual vou “paparizando” o que me rodeia. Já tenho coleccionado no FB quase 40 mil fotografias.

Este, juntamente com outro, faz o duo que me acompanha normalmente todos os dias.
O segundo é o único telemóvel que tenho memória de ter comprado para uso próprio. Um modelo para desporto resistente a poeira, água e choque.
Serve para o uso do dia a dia e é o que me desperta a atenção sempre que algures alguém decide ligar o meu número da Bulgária.

Existem mais dois, um dos quais com duas baterias, a original e outra de alta capacidade mandada vir de Hong Kong.
Pelo tamanho avantajado que tem, obriga ainda à substituição da capa posterior, capa esta que fazia parte do pacote recebido após a encomenda.
Trata-se do anterior telemóvel profissional que usava em Portugal. Vai servir para gravar, com recurso a uma aplicação que uso e ao GPS, os percursos pedonais que tenho em mente.

O terceiro nem penso utilizar e normalmente está em repouso sobre a minha mesa-de-cabeceira servindo apenas de despertador, função a que se destina aqui.
Ao contrário dos outros tem botões, um ecrã nada táctil e na sua designação nada que possa revelar algo que se assemelhe com esperteza.
Tem ainda outros atributos úteis, o despertador funciona mesmo quando desligado, tem um consumo de bateria muito baixo e está munido de um cartão gémeo do meu número português, o que já me deu muito jeito.

Reparo em algo que está debaixo da cama. A primeira impressão é de um brinquedo de borracha. Rapidamente me apercebo que não é, ou melhor, não são.
A palavra, que não verbalizo por não haver necessidade, remonta ao tempo de nadador salvador na Figueirinha, uma praia da Arrábida onde passei cerca de seis verões.

Na verdade a minha “profissão” era mais de vigia, que tem como função não tanto vigiar o que se passa dentro das águas geladas que por ali passam, mas sim a concessão no que respeita à ordem, limpeza, montagem e cobrança dos respectivos toldos e barracas.

Cedo fui incitado a tirar o curso de nadador salvador e fui promovido a vigia-nadador-salvador, mantendo as funções iniciais, mas com responsabilidade acrescida em termos legais. Quer ali, quer em qualquer situação de possível afogamento.
Já expirou a licença, pelo que agora só tenho responsabilidade moral em ajudar, a legal já não existe.
Na altura em que inicio funções na praia tinha terminado um reinado Beirão. Algumas pessoas das Beiras faziam ali o verão a trabalhar, voltando para casa após a temporada.

Eram agora substituídos por estudantes em busca de trocos extra ou mesmo necessários. A maioria era originária dos bairros mais emblemáticos de Setúbal fazendo uso de expressões muito sui generis.
“Chinéis” penso eu, fazendo uso de uma daquelas expressões que sempre me ficaram na memória e que uso muito na brincadeira.
Isto começa a parecer um hotel. Ainda procuro o roupão turco e o mini-bar mas, como não tenho visão raio-x, fracasso na fugaz tentativa.

Decido deitar-me um pouco para experimentar a cama e ler algumas indicações existentes na traseira do mapa.
Apenas cerca de metade me diz respeito; é bilingue pelo que opto directamente pelas partes inglesas.
O que costumo fazer quando folheio as revistas de bordo dos aviões. Na TAP faço excepção de deferência à ainda transportadora de bandeira e fico-me pela língua mãe, mas sempre curioso na tradução de algumas partes.

Sou atraído pela fotografia da cruz no topo de Mount Athos. Está inserida numa secção que fala da “Flora and Fauna”.
Começo uma leitura não muito cuidada, sendo maioritariamente atraído pelas palavras em negrito.
Após passar por várias que identifico pertencerem à flora, começam as da secção fauna.
Faço uma leitura mais atenta desta parte, afinal não penso ser perseguido por nenhuma planta ou árvore, mas talvez fosse bom saber que vida com capacidade locomotiva poderá atravessar-se no meu caminho ou vice-versa.

Algumas denominações fazem-me reler o texto ainda com mais atenção: Wild Boars, Jackals, Foxes e umas quantas “Snakes” precedidas por uma subcategoria específica.
O pouco que sei sobre cobras de pequeno porte é que as venenosas têm a cabeça triangular ao invés das outras que a têm arredondada.

Durante a leitura do texto apercebo-me que as “Snakes” referenciadas não são a preocupação.
Diz que a única espécie perigosa é a “Lancehead Viper”, aqui está o triângulo da questão.
Fico um pouco mais descansado depois de ser informado que já não existem lobos, depois de nos anos 60 terem sido considerados “fair game”, tendo desaparecido da península.
Fica-me na ideia a “Viper”, mas também os “Jackals” e os “Wild Boars”. Para os mais sapientes nesta matéria, a associação à designação poderá ter tonalidades diferentes, mas para mim apenas visualizo javalis, com os quais não pretendo ter nenhum encontro de terceiro grau.
No fundo, o homem não é o único animal perigoso por estes lados.

Recordo-me de um livro do Bill Bryson, escritor sobre viagens. Faz referência ao facto de, dos dez animais mais letais do planeta, dez deles estarem na Austrália.
No topo da tabela, um tipo de “alforreca” denominada “Caravela Portuguesa” pela parecença do corpo principal com as velas das embarcações portuguesas.

Nos dois meses que vivi em Melbourne, tive oportunidade de ver muita bicheza desta natureza, mas sem contacto directo.
A maioria foi vista em exposição, para admiração de quem se quisesse dar ao trabalho de lá ir pagar a devida quantia de entrada.

Logo na chegada ao hotel onde fiquei, haviam avisos para não deixar nenhuma comida fora do frigorífico. Estávamos na época das formigas de asas.
Mais preocupante era a advertência para verificar o possível alojamento de aranhas nos sapatos antes de os calçar.
Tratava-se da “Red Back”, devido à mancha vermelha que tem nas costas. A potência do veneno que tem é inversamente proporcional ao seu tamanho.
Só sobre a Austrália que conheci, poderia divagar horas a fio. Tenho de me recentrar no local onde estou. Com tanto mundo exterior trazido para aqui em pensamento, ainda me arrisco a afundar a península com o peso.

Altura de iniciar o reconhecimento. Aproveito para verificar as indicações recebidas e nem preciso de ler o sinal afixado na porta para perceber onde são os banhos. O barulho distinto da água a cair, mas quebrada aqui e ali pela intromissão humana no seu trajecto, revelam onde é antes de lá chegar.
A porta não está fechada, mas ligeiramente entreaberta. É possível antever que deve ser para uma pessoa apenas e fumegante o suficiente para ser confortável na temperatura oferecida a quem ali vai.

Na porta seguinte, daquelas não detalhadas pelo monge, pode-se ver o porquê afixado na porta: “Monks Only” diz a parte em Inglês.

Entro numa porta afixada com o dizer “WC”, apenas isto. Não necessita de tradução em grego, ou melhor, não precisa de tradução em inglês.
Para além do”ok”, deve ser das únicas expressões que até hoje verifiquei serem mais universais, ou seja católicas.
Penso no significado. “Water Closet”, segundo me recordo, podendo também ser usado como trocadilho em “White Chapel” fazendo referência à forma e cor com que se apresentavam nos Estados Unidos, aquando da sua localização fora da área de residência. Como que uma pequena capela encimada pelo telhado inclinado e pintada de branco.

Uma pessoa faz a barba num dos dois lavatórios existentes sobre a esquerda.
À direita, alguém se dedica a lavar os pés numa bacia em pedra que parece feita para o efeito.
Julgo ser apenas por questões de higiene, mas recordo-me de Istambul, onde é prática comum por outras razões.

Das duas portas que seguramente dão acesso ao sítio onde posso devolver a água ao seu ciclo normal, uma está fechada.
Faço uso da outra verificando que não fecha, tem o ferrete partido. Possivelmente o cubículo de chuveiro também.
Finda a tarefa de carácter fisiológico, efectuada mais por carácter de manutenção preventiva do que por urgência, penso desde logo em dirigir-me a uma varanda que se vislumbrava no local onde nos livrámos da bagagem à chegada.

No corredor, agora liberto de qualquer mochila e saco no chão, vejo uma sala onde algumas pessoas bebem o que julgo ser café. No percurso, passo pela sala onde esperamos o respectivo quarto; esta encontra-se agora fechada.
Antes de sair para a varanda, vejo ainda uma porta aberta onde se vislumbra um móvel com livro

s.

É a zona de fumadores, sendo usada também por aqueles que ali querem admirar as vistas ou apenas conversar um pouco.

Decido depois fazer uma incursão na “sala dos livros” onde algumas pessoas estão sentadas, aparentemente à espera de alguma coisa.
Vejo que sobre a mesa existe um livro enorme onde se pode ver o registo de entrada das várias pessoas.
Possivelmente não percebi algo na comunicação. Não arrisco fazer o acto, além de não saber se é para todos, verifico ainda que requer o número do “Diamoneterion” e não o tenho comigo.

Para minha surpresa existem livros em inglês, mas limito-me a dar uma vista de olhos nas lombadas, o tempo não é suficiente para terminar nenhum dos livros aqui disponibilizados.

Entra um monge, que se senta a conversar com os restantes ocupantes do espaço e eu prossigo o reconhecimento do espaço que não tem muito mais que ver.
Lembro-me dos austríacos mencionarem este facto. Os mosteiros nesta parte da península são construídos no topo de penhascos ou encravados em vales. Ficam com pouco espaço, apenas o estritamente necessário.
Do exterior apresentam-se como um edificio único mas, no interior revelam-se separados em várias construções, ainda que anexas e de funções distinta

s.

Os existentes na costa Este são na verdade pequenas vilas com edifícios distintos uns dos outros e muito espaço para andar.

Evito entrar em espaços que podem eventualmente não ser para mim e sou interpelado pelo “rapaz da crista disfarçada” a quem lamento não falar grego.
Faz como que um pedido de desculpas, mas sem falar inglês, terminando aqui a conversa que nem começou.

Aparece momentos depois em sentido contrário e volta a fazer o mesmo, uma pergunta que não percebo, nem sei se é a mesma que a anterior.
Nem sei como reagir. Digo de novo que não falo grego e a sua expressão ilumina-se num sorriso e um abraço de quem pede desculpa pelo erro recorrente.

Vejo mais uns peregrinos a chegar. Têm aspecto de quem caminhou até aqui e falam inglês entre eles. Não preciso de lhes indicar o caminho, descobrem-no sozinhos.

Por uma pequena janela da igreja avisto o meu “amigo da crista disfarçada” no interior, em solene ritual de adoração. Está decifrada a pergunta que me fazia: procurava a entrada. Está também desfeita a ilusão de que viria como “turista”.
Após breve visita ao exterior que, àquela altitude, se resume a um pátio com uma soberba vista, decido fazer uma incursão na “sala do café”.

Entro timidamente sem saber exactamente o que fazer. Uma mesa central é ocupada por algumas pessoas a beber café e chá.
Num dos cantos, o local onde as bebidas podem ser preparadas, parece-me ser “self service”.

Em frente, uma porta dá acesso a uma pequena sala, sobre o comprido, onde vejo o monge que nos recebeu. Está com alguém que não vejo, apenas o assumo pela comunicação que parece estar a decorrer.

Nos bancos corridos e almofadados próximo da porta, vejo os gregos para quem sou o “Éster” e dirijo-me ao que penso ser o mais versado em inglês.
Às primeiras palavras, recebo o que me parece ser uma admoestação com menção gestual à sala onde o monge se encontra.
Fico a pensar se fiz algo que não devia, mas, ao aperceber-se que sou eu, sorri e questiona o que quero.
Apenas que alguém me explique como fazer um café, repito. Na realidade bebo muito café, mas não faço ideia como fazer um aqui.

Dá imediatamente ordens a um dos outros para me ajudar. Este levanta-se solicitamente e não me deixa fazer nada, limitando-se a perguntar se é um café grego que quero.
Não tenho a certeza se é grego ou turco o café que quero, nunca percebi a diferença e limito-me a confirmar.

Tento em vão tomar rédeas na acção, gesticula no sentido de me sentar à mesa, mas apercebe-se que não há lugares disponíveis; a mesa é grande, mas apenas existem quatro cadeiras.

Diz algo a outro do gregos que me conhece como “Éster”. Este levanta-se e faz uma revolução silenciosa que acaba com uma cadeira vazia para mim, isto apesar dos meus protestos a explicar que posso beber o café em pé.

Na verdade, tinha planeado beber o café na varanda, o que agora cairia bastante mal.
Resigno-me, sento-me e não tardo a ter uma chávena na minha frente. O café está frio, a rapidez na execução não foi acompanhada por qualidade, bebo como se fosse o melhor café da minha vida, um tanto constrangido por tudo o que se passo

u.

O monge abre a porta para dar saída a uma alma e entrada a outra.
De onde me encontro sentado, fico com uma visão parcial do ocupante da sala. Está sentado mesmo ao lado da porta.
O monge aparece e desaparece da minha linha de vista. Reaparece no momento em que o ocupante se levanta para rapidamente se posicionar de forma a lembrar-me do Islão.
É coberto por uma aba, aquilo a que se chamaria cachecol, se estivesse ao pescoço de um adepto de futebol. As funções e simbolismos são obviamente diferentes, este é de cor vermelha e desenhos de tom dourado.

Ao meu lado esquerdo está um sobrevivente da dança de cadeiras recente.
Pergunta-me de onde sou.

  • “Portugali”. Digo eu, já fazendo uso da expressão ouvida vezes sem conta.

Pela pressa na pergunta seguinte, fico com a impressão que era apenas uma pergunta retórica. Quer saber o que faço ali.

  • Que fazes aqui? Inquire ele.

Muito boa questão…
O que faço eu aqui? Bebo café, de momento é o que faço.
Sei que não é o que procura, por esta altura já percebo muito bem onde quer chegar.
Faço uma reflexão sobre o tema, na realidade a pergunta carece de ser respondida a mim próprio. Não tanto porque estou aqui, mas como cheguei até aqui.
Os Talking Heads têm uma música que a dada altura diz: “And you may ask yourself-well...how did I get here?”.
Esta é realmente a pergunta que me fica para responder.

Não me recordo do exacto momento em que o meu irmão me falou do assunto. Sei apenas que desde logo pesquisei, perguntei a amigos e comecei a imaginar a possibilidade.
Muito menos me lembro de como abordei o tema com a Cláudia, nem que estratagemas utilizei para ter “visto bueno” lá de casa.

Recordo-me no entanto, de um facto que levou a cimentar a ideia quando ela surgiu. Começa logo nos primeiros dias da chegada à Bulgária, três dias após a chegada.
Na primeira corrida matinal que faço, atravesso território canino e não me consigo livrar de uma raspadela de um dos membros da matilha.

Digo raspadela, pois nem sequer se via. Apenas depois do banho tive possibilidade de vislumbrar algo que poderia der sido causado inadvertidamente, por ter coçado uma pequena borbulha que no local estivesse a desempenhar a sua função, seja lá ela qual fosse.

Existe um problema sério de cães vadios em Sófia e não parece existir solução à vista. Começou na altura da queda do regime, com a escalada de inflação pela impossibilidade de manter os preços ficticiamente baixos através de subsídios do governo.
Culmina com a bancarrota e, como um dos subprodutos, uma série de animais abandonados, na tentativa de aliviar as despesas familiares.

A reprodução dos mesmos tenta ser controlada pela esterilização. Visível nalguns dos que encontro pela cidade através do corte efectuado numa das orelhas, que a deixa também mais descaída do que a outra. Serve apenas de marcação para que não volte a ser alvo de intervenção.

Oiço dizer que não existe real vontade em resolver a questão. As empresas que o fazem não estão dispostas a invalidar a razão da sua existência, deixando de receber os dinheiros do erário público.

Esta foi a situação inicial e que me obrigou a ficar um mês e meio a levar vacinas de prevenção da raiva.
Outras menos marcantes, mas a contribuir para uma série de azares pessoais, levaram alguns colegas a sugerir, em modo de brincadeira ou talvez não, que procurasse um padre ortodoxo.
A possibilidade da ida ao Monte Athos seria uma ida à fonte da questão. Foi uma das ideias que me passou pela cabeça quando congeminei pela primeira vez a ida ao Monte Sagrado.

Os pequenos azares, ou pelo menos a impressão de que aconteciam, continuava.
Talvez fosse apenas sugestão, quando as coisas começam a correr mal, temos a tendência para ver tudo do lado menos positivo. Sempre achei que ser supersticioso dava azar.
Na verdade, a vida no geral corria-me bem, não tinha razão de queixa tirando alguns acidentes de percurso.

Após o regresso de umas férias natalícias em Portugal, intensifica-se o périplo de acontecimentos negativos.
O primeiro de monta deita-me à cama com febres altas durante vários dias até que, indo ao hospital, descubro estar a chocar uma pneumonia. Pelo meio ficou uma ida cancelada a Atenas por causa disto.

O Inverno em curso mostrava-se dos mais rigorosos, ao ponto de muitos no escritório nem terem memória de algo parecido. Fazia parte das conversas de café, fazendo parecer o conhecido hábito britânico, mas aqui com vocábulos ligados a condições climatéricas mais severas.

A neve era literalmente aos montes e muito acima da capacidade logística de limpeza do município, já de si insuficiente para os invernos regulares. Cheguei a registar temperaturas na casa dos -25 graus centígrados.

Viagens de lazer na Bulgária eram algo que estava também fora de questão. Necessitava de me deslocar a Skopje por razões profissionais e tal ficou adiado “sine dia”, até haver condições para o efeito.
O culminar de tudo foi, na minha opinião, o dia 26 de Janeiro, aquando de nova tentativa de ir a Atenas.
Saio de casa pelas 6 da manhã para regressar por volta das 15. Já tinha estado dentro do avião pronto para descolar.
O agravamento da queda de neve, para além da capacidade de manter a única pista em operação, fechou em definitivo o aeroporto, já a trabalhar com muito atraso.

Apesar de ser o primeiro voo onde devo embarcar que tenho memória de ver cancelado, teria passado como episódio pouco relevante não fosse o inferno que vivi quando cheguei a casa.

No e-mail tinha uma comunicação alarmante e verifiquei no telemóvel português, que tinha deixado em casa, uma série de tentativas de contacto.
Resumindo, tinha arrendado, por intermédio de uma agência, a casa a um narcotraficante. O apartamento tinha sido alvo de arrombamento pelas autoridades com grande aparato, segundo os relatos que pude receber e passei o resto do dia e grande parte dos seguintes a fazer controlo de estragos.

No dia seguinte, já apelidado de “Escobar” pelos colegas de trabalho, envio o e-mail com o pedido de entrada no Monte Athos.

No dia 27 de Janeiro marquei uma data que me pareceu segura o suficiente para haver vagas, ter condições climatéricas razoáveis e estar a uma distância que me permitisse, ainda, preparações para o devido efeito: 1 de Junho.
Um mês depois, houve ainda um outro “azar” de relevo que quase me invalidou a programada participação na meia maratona de Belgrado.

No meio de tanta corrida e volta de bicicleta pela neve, consegui a proeza de torcer o tornozelo com alguma gravidade. Só que foi a empurrar uma carrinha. Tentava ajudar a desencalhar da neve um grupo de turcos, algures numa montanha.
O resultado foram 40 dias de estabilizador no pé e dificuldade em andar.

No fundo, já tinha a minha resposta. Para além da minha curiosidade natural e desejo de aventura, estava aqui por impulso.

Ainda olhando o grego nos olhos, respondo de uma maneira genérica, como quem acrescenta “Leitura, Cinema e Desporto no fim do primeiro CV”, como se houvesse obrigatoriedade de mostrar alguma ocupação nobre do tempo de lazer.

  • Porque gosto de conhecer coisas novas.

De tão vaga que era a resposta, ele retirou o sentido que pretendia, iniciando logo a conversa sobre a possibilidade de conhecer melhor o assunto aqui em questão. Bastava falar com o monge.
Não tinha tempo, justifiquei, já tinha um plano feito e o tempo era pouco.
Assegurou-me que o monge tinha o poder de me prolongar a estadia por muito tempo, pelo que não haveria problema.
Referia-me não ao período concedido para permanência, mas sim a compromissos de ordem pessoal e profissional no “exterior”.

Entre a tentativa de assimilação do que lhe disse e a eventual busca de contra argumentação, passou-se o tempo suficiente para ser chamado, por sua vez, a falar com o monge.

Ainda tenho parte do cérebro ocupado com o “como estou aqui”, apesar de já ter uma resposta construída.
Outros factos ligam-se ao intricado percurso que fiz mentalmente em linha recta, mostrando no entanto ramificações. Decido não as seguir. Se começo por um desses caminhos, posso não conseguir voltar para trás.

De repente, dou conta de um facto interessante. Passam cerca de nove meses depois de chegar à Bulgária. Tenho de me “lembrar de não esquecer” de omitir este facto dos presentes. Ainda me dizem que venho aqui (re)nascer.

Lavo a chávena, colocando-a junto das outras. Todas elas têm forma e feitio distintos.
Rumo a outros destinos, mas por falta de variedade, acabo novamente na varanda onde um dos estrangeiros entrou recentemente.

É holandês, pelo que devem existir nacionalidades diferentes no grupo. Estou claramente convencido que o que ouvi antes foi inglês e não uma língua que, de tanto uso que faz da garganta, deve muitas vezes necessitar de lenço a acompanhar o discurso.

Opto por não fazer mais perguntas relacionadas com informações do plano que construí. Cada cabeça sua sentença e ainda me arrisco a ficar com dúvidas sobre o mesmo.
Das menções que fiz hoje à subida do monte, em pequenas interacções que tive, era invariável receber um escrutínio de alto a baixo, como a medir a possibilidade física de tal acontecimento.

  • Fizeram o registo no livro?

A resposta demonstra algum conhecimento de causa.

  • Em alguns mosteiros é obrigatório, aqui não ligam a isso.

Pergunto-me se será apenas com os “aliens”, ou se o mesmo se aplica aos que aqui vêm em busca espiritual.

Na tentativa de esclarecer outra dúvida, questiono:

  • Costumam deixar alguma doação?
    Li que é uma prática comum entre os visitantes e não gostaria de deixar uma má impressão do “tuga”. Na verdade, esperava apenas ficar com uma bitola quantitativa da questão.
    Ri-se em tom de desdém e responde:

  • Tudo isto já está pago por fundos comunitários.

Não comento sequer e o resto da conversa é de pouco relevo. Chega um dos seus amigos e decido retirar-me.

Ainda tenho algum tempo até às 16:30 e decido-me por regressar ao quarto.
Ao, inevitavelmente, passar junto da “sala dos livros”, vejo que as conversas entre monges e visitantes continuam. Estou mesmo vedado a muita coisa por não perceber o que se fala…

Activo o despertador para não arriscar que o sono me transporte para além do desejável, se por acaso enveredar por esse caminho. Precaução apenas, que se revela desnecessária mais tarde.

Estou entregue aos meus pensamentos, faz um pouco mais de 24 horas.
Denoto uma actividade de retrospecção e referências ao passado fora do vulgar. Busco a razão e encontro duas que não tenho certeza de serem verdade.

Não é normal para mim estar tão sozinho. Viajo desacompanhado várias vezes, mas quase sempre em terreno mais cosmopolita. Sempre vou ouvindo línguas que percebo e involuntariamente vou apanhando trechos das conversas que me mantêm mentalmente ocupado.

Aliado a isto, temos a fertilização resultante da expectativa que a viagem criou.
Estou a fazer relações com factos que nem me recordava. Surge a ideia de pôr algumas coisa por escrito, a fim de compilar um pequeno resumo dos acontecimentos.

Trouxe caneta, mas vou ter de fazer uso das folhas que imprimi com informações do local.
Começo numa das páginas não impressas e depressa preencho três delas.
A maioria das ideias transborda e caem fora da zona de escrita correndo o risco de nunca se ver passada a escrito.

Dou uma vista de olhos no que escrevi. Descanso o pulso e mão que já se sentem da actividade nada usual nestes dias. Ainda para mais, deitado numa cama a lutar contra a gravidade. Esta apenas seria necessária para fazer a tinta descer à superfície virgem do papel.

É impressionante, não percebo quase nada do que o “eu” de há minutos atrás tentou transcrever… em caracteres estranhos.
A minha grafia nunca foi digna de elogios, mas está cada vez pior. Os editores de texto deram o golpe de misericórdia na pouca dignidade que ainda existia na minha escrita manual.

Faz uns anos, tive uma oportunidade de trabalho que me levou até ao Chile. Não era aí o “possível futuro ganha-pão”, mas os recursos humanos eram partilhados na região.
Foi tudo em espanhol, saí-me bem na compreensão e mesmo na oralidade. A escrita foi em inglês e podia ter optado por falá-lo também.

Um dos testes do psicólogo era a análise da grafia através da escrita do meu nome.
Após lhe passar o papel, perguntei se me dava uns minutos de avanço antes de denunciar um psicopata às autoridades locais.
Riu-se e acabou até por fazer alguma análise “in loco”, coisa que não era do protocolo. Gostou da piada.

Podia muito bem iniciar uma carreira na falsificação de receitas médicas. Nunca percebi como é que os farmacêuticos conseguem perceber o que vem no receituário. Possivelmente acabam por aviar por aproximação, acabando por aliviar os pacientes de males que não têm, fica a prevenção.

Na verdade sempre fui mais ligado aos números do que às letras. Pensando bem, nem estes se formam muito bem na porta de um objecto de escrita empunhado por mim.
Um 1 transforma-se num 2, um 9 num 1, etc.
Chego a cruzar o zero na diagonal, à boa maneira informática dos primórdios, para não gerar dúvidas.
Também traço o sete no meio, como forma de o distinguir mais facilmente.

Fiquei contente quando um dia li algo sobre a formação dos números. O número de ângulos que tinham, representava o número em questão.
Eram sempre constituídos por formas rectas. Ficou-me na memória o sete, tinha efectivamente o traço a meio.
Só não gostei da explicação do zero, redondo e, como tal, sem ângulos.
Tinha uma ideia de, ainda muito novo, ter-me sido explicado que os árabes faziam as vendas no deserto, dispondo os artigos em pequenas covas feitas na areia. O zero era a forma que ficava depois de não haver nada.

Decido guardar o que já escrevi. Pode servir para futura consulta daquilo que perceba. Começo a fazer apenas pequenos apontamentos. Depois compilo o texto de uma forma mais simples para mim, num computador.

Com isto é quase hora da missa. Anulo o alarme e dirijo-me para onde se encontram pessoas, com o fim de me aperceber das movimentações que me alertem do solene momento.

“Chegou a hora!”, penso eu ao ver o começo de movimentos menos erráticos, mas com uma direcção em comum. Só depois me apercebo que a expressão me veio à mente por tê-la já ouvido vezes sem conta.
Apesar de ser evidente, sou ainda amavelmente alertado por uma pessoa - “church”, diz ele. Não me lembro dele e apercebo-me que todos devem saber que sou português, ou pelo menos estrangeiro.

O tempo começa a diminuir o passo, à medida que me desloco para a igreja, já por arcadas.
Estou já dentro de um tipo de átrio, que não estou seguro já ser parte do local de adoração, mas tudo indica que sim.
A entrada é feita pelos lados e, pela configuração do edifício que rodeei, entra-se no topo mais afastado do altar.

Um banco corrido de pedra do lado esquerdo, debaixo de janelas altas de vidro transparente; cadeiras altas de madeira em ambos os lados e três portas do lado direito. Duas delas, mais pequenas, e a que parece ser a principal, a meio.

A entrada é feita indistintamente por qualquer delas. Faço-o logo na primeira que passo. Na minha frente, outra abertura, mas sigo o fluxo principal, acabando por passar a porta principal à minha esquerda, na busca de uma cadeira livre onde me “refugiar”.
Acabo num canto com outra cadeira a 90 graus.

Consegui alguma visibilidade para a outra parte da igreja, onde se vai desenrolar a maioria da actividade.
Já sabia que, ao contrário das missas católicas, aqui não se tem a visão da cerimónia. Pelo menos nem todos. Vejo pessoas a passar para o outro lado.

Observo os movimentos em curso. Fui dos únicos, senão mesmo o único, a entrar directamente para me fixar junto de uma parede, como que numa alcova.
Fazem lembrar formigas junto do buraco de entrada, quando existem muitos carreiros em uso.
Chegam a parar em frente um dos outros, como que a tentar acertar o lado por onde devem prosseguir. Deveriam adoptar uma regra mais “ortodoxa” para o efeito.
Com tanta água por perto, podiam usar as regras marítimas, dando o lado esquerdo a quem vem de frente.

Realmente, o cenário parece caótico no geral, mas com uma organização impressionante a nível individual.
Cada um parece saber exactamente o que tem de fazer, apesar de não parecer haver uma regra geral.
Nas duas salinhas laterais e ala principal, não tenho visibilidade para saber o que se passa. Assumo ser igual ao que aqui se desenrola.

Existem muitos quadros com imagens e cada um deles merece reverência e um beijo algures. Cada um parece ter um local específico para o ósculo, ou simulação do mesmo. Isso é mais patente numa grande gravura, onde alguns chegam a esperar a desobstrução de um certo local, enquanto outros continuam a sua tarefa em zonas desocupadas.

Até no “sinal da cruz”, que fazem incessantemente em frente de cada ícone, não se vê grande harmonia.
Estou habituado a ver um movimento bem definido (algumas vezes mais tímido na amplitude, mas bem definido na forma de cruz).
É difícil descrever por palavras a discrepância entre as várias formas como o vejo feito aqui.
Alguns até parecem estar na dúvida onde têm de levar a mão, na passagem pelos quatro pontos. Outros parecem perder momentaneamente a força do braço, depois de simular o movimento da mão à testa. Tentam depois repescá-la, já quase a tocar no chão, para iniciar o movimento ao ombro esquerdo.

Até nas mãos a coisa se complica, mãos abertas, semi-fechadas e alguns que parecem estar a segurar migalhas entra a ponta dos cinco dedos.
O aparente caos partilhado entre peregrinos e monges prossegue e volto a atenção para as paredes.
Reparo que existem, nas paredes pintadas, certas figuras que merecem a mesma deferência que os quadros e as gravuras. Nestes pontos nota-se algum desgaste na tinta.

Não existe nem um pouco de parede sem gravura e o número de ornamentos é tão grande que me faz lembrar as salas de estar das avós. Com todas aquelas fotografias espalhadas nos mais variados sítios, os respectivos "bibelots" e os pratos pintados.
Como se o artista tivesse ficado sem tela e, numa incessante inspiração, desse uso ao serviço de mesa.

A comparação anterior talvez não seja a melhor. No conjunto apresentado são as paredes e tectos que se destacam.
As imagens são muito fortes e compostas em grande parte por cores escuras e baças. Afinal são igrejas tatuadas e com forte recurso a piercings.
Vou mais fundo na comparação, tentando perceber o que me inquieta. É a natureza das imagens. Nem tudo são “rosas”, existe um sem número de figuras maléficas que poderiam estar orgulhosamente afixadas na pele de um “Hell Angel”, montado na sua Harley Davidson.

Volto a atenção para quem já está instalado. Estou de pé e não conheço o protocolo, que a esta altura já duvido haver.
Uns de pé, outros sentados e outros sentados também… a diferentes alturas. Sem me virar, faço uso do maior órgão humano para utilizar o tacto e procuro o assento com a mão; verifico que estou num dos baixos.

Alguém se levanta, faz um passe de mágica e volta-se a sentar numa posição mais elevada. Procuro perceber como se faz e ajusto o meu para o mesmo nível, mantendo-me de pé até perceber que a maioria se vai sentando.

O ambiente continua “descontraído” na forma de estar durante a cerimónia. Esta, para mim, resume-se a ouvir uma ladainha vinda da outra sala e algumas movimentações.
Incrível que continua a haver entrada e saída de pessoas. Algumas trocam palavras de quando em vez, mas sempre num tom de sussurro.

Levanta-se tudo e apenas os mais compenetrados ficam um pouco mais de tempo recostados nos bancos.
Um monge inicia um trajecto pelos vários pontos, com um queimador de incenso que vai lançando para a frente, tentando depois controlar o movimento pendular de retorno.
A cada sacudidela, sai mais fumo do que no restante tempo.
Ao passar por mim, consigo aperceber-me melhor do cheiro agradável já então chegado até mim pela entropia sempre a laborar no universo.
No fundo, só o fogo ou outra qualquer variante do mesmo (a palavra sânscrita é Agni, que, para os Hindus, é o deus do fogo e aqui significa Santo) parece desafiar a entropia, começando logo nas caldeiras estrelares a combinar em formas mais complexas o hidrogénio abundante.

O mesmo monge, com quem já me cruzei várias vezes, aparece na sala onde me encontro. Tem na mão uma vareta com uma pena de ave na ponta.
Faz uso da mesma para, com uma sacudidela energética e seca, apagar algumas lamparinas no tecto.
Terá acabado? Não passou assim tanto tempo. Ninguém sai do lugar, apesar de continuarem a haver movimentações e trocas de cadeiras.
Isto mais parece o Governo, ninguém percebe o que fazem ou como o fazem, o que aparece feito parece por milagre e a troca de cadeiras, saídas e entradas são frequentes.

Começam a distribuir velas e junto com elas um quadrado de cartão. As pontas vão-se iluminando, sendo a chama passada de vela em vela após as mesmas serem “espetadas” no cartão, que tem para o efeito dois golpes em cruz.
O cartão deve ficar um pouco acima do meio da vela, segundo as indicações do monge que as distribui, e assumo destinar-se a proteger as mãos do efeito da gravidade sobre a cera derretida.

Para além do decorrer normal e sem grandes novidades, só uma situação marcou o resto do evento.
A cadeira que estava a “fazer canto” com a minha, era ocupada por um homem que na pilosidade facial fazia lembrar um monge.
A dada altura, aponta para a vela que seguro com as duas mãos e diz algo.
Sussurro que não falo grego e outra pessoa diz algo, numa voz de tom normal, levando do “barbudo” um valente “shush” seguido de mais umas palavras ríspidas.
Tudo e todos voltam ao normal. Fico a olhar para a maneira como seguro o objecto amarelo que lentamente é consumido pelo fogo. Comparo com quantos consigo vislumbrar.
Tirando o facto de todos fazerem, obviamente, uso das mãos, não vejo nenhuma regra.
Ele não olhou mais para mim e eu sigo o meu caminho estático apenas alternado entre o constante levantar e sentar.
Minutos depois reparo que retira um lenço de papel e está pronto a tentar um número de “Chapitô” para desobstruir as narinas.

Aponto para a vela dele esperando ter a expressão facial correcta de interrogação. Responde com a entrega da vela para fazer uso de ambas as mãos no manejo do pedaço de pape

l.

Terminada a cerimónia, somos encaminhados para o “Trapezi”, o local da refeição.
Só existem duas refeições. Pela correspondência à minha experiência, denomino-as de pequeno-almoço e jantar.

Será a minha primeira refeição num mosteiro e já li algumas coisas sobre o assunto.
Ao entrar, somos distribuídos nas várias mesas de madeira corrida. Uns a seguir aos outros e com pouco espaço para nos mexermos.
Devia ter treinado a comer com livros debaixo dos braços, como li uma vez fazer parte do treino da nobreza antiga.

Os monges já estavam de pé em frente aos lugares das suas mesas (separadas das nossas).
Um deles está separado dos outros, a ler em voz alta as escrituras e vai continuar até ao final, segundo a informação que tenho.

A sopa já está na mesa em gamelas metálicas. Existe pão e água. Nada de vinho! Fiz a aferição logo que cheguei, pois tinha lido que existem dois dias que não bebem, sexta é um deles.
Venho para o “Dionísio”, nome que associo a vinho logo no dia em que ele não é servido. Estou com alguma expectativa em prová-lo, pois já ouvi falar da sua qualidade.
De resto, existe pão e azeitonas, nada mais na mesa para além de alguns outros artigos auxiliares como guardanapos, sal e talheres arrumados num tipo de vaso, pouco mais.

Entrada terminada, é altura de nos sentarmos. O sinal é dado por um toque numa sineta.

Retiro uma colher e procuro perceber o que me reserva o conteúdo do prato. É constituído por arroz com umas ervas que lhe dão um sabor distinto mas, se houve sal envolvido na convenção, não foi na panela que o colocaram.
Faço como os outros e acrescento algum, espero que seja marinho. Vou precisar de sais para os dias seguintes.

Durante a apresentação dos resultados de um check up de medicina laboral na Bulgária, fui aconselhado a comer mais sal. A recomendação ia para um tipo específico de sal marinho, uma marca grega que tem menos cloreto de sódio e é reforçada no iodo.
Ficando longe do mar e com pouca variedade de peixe, o iodo é algo que se pode revelar deficiente se não houver alguma prevenção.
Ainda por cima o sal usado, de modo corrente em Sófia, é derivado do sal-gema, que sempre ouvi dizer não ser muito aconselhável.

A quantidade não é muita e termino rapidamente enquanto aprecio o salão em forma de cruz, também ele coberto de imagens.
Aproveito para comer mais algum pão e azeitonas que são maiores do que as que costumo ver em Portugal, mas comuns por estes lados.

Questiono-me se haverá mais algum prato ou se ficamos por aqui. Verifico alguma movimentação de tabuleiros e noto que existem facas e garfos no “vaso”.
Depressa me desengano de duas coisas. Não existe mais nenhum prato e o minúsculo prato branco à minha frente não era para pôr os caroços de azeitona, mas sim para ser servido de uma minúscula quantidade do que suponho ser a sobremesa. É algo com amêndoa, mas não muito doce.

Ainda estou a tentar apanhar todos os bocados deste farelo, quando toca de novo a sineta. Toca a levantar!
Temos de esperar pela saída dos monges, após o que se inicia a saída dos restantes, com a maioria a voltar para a igreja.
Sigo o caminho da grande maioria. A entrada é feita, desta vez, directamente para a ala principal.
Estou um pouco para trás, mas percebo que um dos monges está a falar sobre algo que está disposto sobre uma mesa.
Lembro-me de ter ouvido falar das relíquias dos mosteiros, deve ser isso que está a ser apresentado à “multidão”.
Espero uns momentos, em que aproveito para explorar visualmente o local. A grande proliferação de motivos e estruturas douradas dá a esta sala um aspecto menos pesado, mais “limpo” e, na minha opinião, mais apropriado a celebrações religiosas.

Tenho oportunidade de ver o que se passa através de um pequeno corredor que se forma para ir dando vazão a quem se retira.

Na mesa distingo três estojos abertos, mas apenas um deles se apresenta com uma forma que, passando a minha retina, tem correspondência na forma com algo já existente nos meus arquivos: antebraço e mão que parecem unidos por uns pedaços de metal nas articulações.

Quem chega, entrega ao monge algo que não consigo identificar, inicia um sessão de beijos nos objectos dispostos, enquanto o monge vai tocando, com o provável amuleto pessoal, em cada uma das relíquias e sempre no mesmo sítio de cada uma.
Devolvido o objecto ao proprietário, este segue caminho para o exterior.

Sigo o exemplo apenas na parte de sair e dirijo-me para o pátio externo onde reparo que existe agora uma porta aberta num dos pequenos edifícios aí existentes.
É o “centro comercial local”, apenas dedicado à venda de artigos de carácter religioso. Muitos entram e saem e como que mostrando um troféu, passam os artigos em revista perante outros que estão também em vias de decidir se é o que vão comprar.

Desço um pouco a pequena rampa existente e sento-me, meio torcido, para poder apreciar as vistas que incluem a outra península. Daquele lado ainda deve haver pessoas a aproveitar os últimos momentos de praia. Afinal, ainda passa pouco das 18:30 e, no entanto, já “jantei”. Julgo que o programa oficial das festas acabou por aqui.

Levanto-me para ir não sei bem onde. Inicio o percurso de um caminho não definido, mas que, neste momento, não apresenta opção senão por onde vou.
A poucas passadas do início estou de novo na parte principal do pátio exterior e vejo os quatro gregos já familiares.

  • My friend. Diz o grego mais britânico do grupo.

Mas é rapidamente corrigido por outro.

  • Our friend. Disputa ele a minha amizade, como se de um bem precioso se tratasse.

Um deles começa logo a perguntar, no seu inglês, se estive na igreja depois de jantar. Uma das relíquias era a mão direita de João Baptista, a que baptizou Jesus, acrescenta para que a explicação não fique por uma corriqueira frase, mas tenha o impacto devido.
Se não souber quem foi João Batista, devo com certeza saber quem foi Jesus. Imagino eu que seja o pensamento dele.
Sabia que era um mosteiro dedicado a João Batista, mas nunca fiz a relação ao ver a relíquia, ando distraído dentro da minha cabeça, talvez distraído demais.

A conversa foi longa, mas a mensagem passada encurtada pela barreira linguística. De tanta palavra que pediu emprestada aos outros, deve ficar o resto da vida em austeridade permanente.

Sabia mais da Igreja Católica do que eu, mas somente com o intuito de a poder comparar com o regime Ortodoxo. Na verdade, para poder demonstrar que somente esta última era uma verdadeira religião.

Não percebi nada do que os outros de vez em quando lhe diziam, mas pelo tom de voz e comunicação não verbal seria algo como: “Deixa o moço em paz!”
Ele parecia ripostar que só estava a fazer a obrigação dele, quase uma inspiração divina, fazia ele transparecer pela maneira como erguia a cabeça altivamente no alto do pescoço, estriado por muitas rugas que escorriam camisa a dentro, não deixando adivinhar o seu fim.

Os amigos continuavam na oposição a esta ideia, mas seguiam o empréstimo de vocabulário.
Talvez de olho a um lucro futuro, senão numa taxa de juro para o efeito, talvez na miragem de integrarem um futuro comité para cobrança coerciva. Troika Divina, leia-se.

Do que disse, pouco consigo articular. Percebia aqui e ali pequenas coisas, como quem percebe alguns substantivos de uma língua estrangeira mas não lhes dá acção nem atributos, pelo desconhecimento dos verbos e adjectivos.

Ficou depois muito tempo no mesmo assunto. Se era um professor universitário que se tornou monge ou vice-versa, fiquei sem saber. Fosse quem fosse, merecia o apreço intelectual e religioso dele. Insistia que eu o tinha de visitar.

Muita vez repetiu a mesma coisa de moldes e feitios diferentes, para ver se algo encaixava na minha mente, tal como um bebé que pela primeira vez tenta enfiar as peças triangulares nos quadrados ou círculos, não fazendo sequer relação com as cores que o brinquedo também utiliza.

Convencido do meu “não convencimento”, opta por uma arma que deixou os outros atónitos. Internet exclama ele!
Podes ler bastante sobre ele lá, antes de o ires visitar. Não usou o “if” mas sim o “before”, talvez não fosse propositado, mas deu um tom de vaticínio às suas palavras.

De um bloco de notas retira uma página onde começa por escrever “www”, o que provoca riso generalizado nos outros, como que a pensar o que saberia ele sobre este tema.
De seguida, põe separado por um ponto um “gz”, “gr” segundo a tradução fonética dele e com bastante sentido, era o domínio grego no mundo virtual.

Não estive para lhe explicar que isto deveria figurar no final do endereço que utiliza o porto 80, representado por WWW. Não sou perito na matéria e mesmo que utilize a tecnologia diariamente, não faz sequer ideia destes conceitos.

Ao lado, uma por cima da outra, duas palavras que mais parecem estar escritas em grego (se não estiverem mesmo). Escreve ainda o nome da personalidade em questão mais abaixo.
Estava feito o pergaminho para a minha libertação, no fundo, o renascimento em que pensei horas atrás.
Recebo a recomendação e guardo-a num bolso traseiro, batendo no mesmo de seguida, como para demonstrar que recebi algo muito importante.

Não pára e começa logo a falar do meu filho… não percebo o que quer ele dizer do meu filho. Muito menos como sabe que tenho um.

Tento sintonizar no que diz, tentando ir buscar atenção e compreensão para além dos meus limites normais.
Teria de realmente saber o que dizia. Se fosse coerente, estaria perante alguém a quem devia ter dado mais crédito.

Os outros, porém, continuavam a dar-lhe crédito sem conta, as palavras continuavam a passar de mão em mão para chegarem finalmente aos meus ouvidos na forma mais parecida com o inglês que dali poderia surgir.

Só assim me apercebo que a utilização de “your son” foi um erro da moeda utilizada, fazendo o câmbio, ficou menos interessante.
Tal como quem leva notas de um país para as ver trocadas por meras moedas no estrangeiro. “His son” foi então proferido em jeito de errata e o meu interesse desvaneceu.

Pediu o papel de volta para escrever o nome do “meu filho por dois minutos” e a conversa desvaneceu um pouco.
O suficiente para poder apreciar novamente o que se passava em volta.

Alguém passa na minha frente com uma mão cheia de um artigo muito comercializado ali, um tipo de pulseiras.
Chamo-o à atenção para o facto de ter deixado cair uma. Agradece, iniciando um diálogo comigo.
Senta-se ao meu lado, já ciente de que teria de falar inglês e até não se sai mal nas poucas palavras que sabe.
Ensina-me algumas palavras em grego, mas apenas me ficam na memória as que já sabia. Em seguida despede-se e prossegue o caminho interrompido.
Levanto-me, informo os quatro gregos da intenção de ir ver o pôr do sol na varanda do outro lado. Sigo a “fuga”, passando pela sala de café onde me faço munir de um. Foi feito por mim e não saiu nada mal, está bem quente, como se quer.

A minha verticalidade mantém-se por mais algum tempo, enquanto o sol teima em não deixar registar de maneira realista os seus efeitos na paisagem.
Após o que se resume a observar o ambiente e vivências dos outros peregrinos com os monges, vou então horizontalizar a minha perspectiva das coisas, com a esperança de conseguir descansar.
Sei que a noite é dedicada à oração por parte dos monges. Se forem tão barulhentos como os turcos, vou no mínimo sonhar com ciganos a cantar, embalado pelos cânticos bonitos, mas nada amigos do sono.

Ao entrar no quarto, reparo em algo que me passou despercebido antes. Tem efectivamente fechadura, mas nenhuma chave disponibilizada pelos anfitriões.
Por curiosidade verifico a possibilidade de trancar por dentro, que existe.
Já tinha visto este método muitas vezes, empurra-se um botão para dentro, impedindo a entrada de outros e é um excelente método pois numa saída urgente basta rodar a maçaneta para destrancar o mecanismo.

Não estou nada preocupado com roubos por aqui, no entanto deixo a porta trancada. O corredor é uma infindável fileira de portas, ao estilo de uma passagem do filme “Yellow Submarine”. Não há números nas portas e só consigo identificar a minha por ficar estrategicamente ao lado de um acesso de umas escadas para o exterior. Fica salvaguardada a hipótese de intromissão por engano.

Capitulo 3.

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