Athos - Capítulo #4/5

Dia 3 – A última caminhada (03.06.12)

Acordo mais uma vez pelas 3:30 com o sol a entrar pela janela dentro. Decido que será a última.
Não é o sol, obviamente, pois está noite de lua cheia. Nos últimos tempos tem havido vários alinhamentos de astros, noticiados como únicos em tantos anos, que daria para eu viver várias vezes.
Não me recordo, no entanto, de ter lido sobre este alinhamento bem mais significativo neste momento. A lua alinhada com a janela e a minha cara.

Após algumas tentativas de afastar o pensamento do frio, os ouvidos dos roncos e o incómodo da cama, decido que é altura de abandonar o abrigo.
Vou aproveitar a luz lunar e fazer-me à “estrada”.

Ainda na tentativa de fazer pouco barulho, arrumo tudo o mais silenciosamente possível, com a sensação de que seria impossível competir com a sinfonia existente.
É estranho, mas tenho a impressão de que o barulho que faço se distingue, não pelos decibéis, mas pela sua natureza.

A primeira dificuldade surge na abertura da porta. Aqui a luz não chega e aquela parece fechada. Se houver hora definida para a abertura, não sei o que fazer.
Adapto os olhos à luminosidade e percebo o sofisticado método usado para o fecho: um tijolo maciço no canto da porta.

A chegada ao exterior é pontuada pelo fresco do ar. Lá dentro estava frio, mas aqui o vento traz uma brisa agradável à face.
Já não sinto frio no corpo; o pouco movimento efectuado é suficiente para combater a temperatura que se faz sentir.
Sento-me e partilho comigo o pequeno-almoço, que é novamente uma barra de cereais.

Inicio a descida sob um luar irradiado de uma lua exactamente na minha frente. Literalmente um reflexo do “Astro Rei”, mas que ilumina de forma considerável o caminho na minha frente.

Não demoro muito, depois de iniciada a caminhada, para perceber uma lacuna na minha análise.
A luz solar penetra, circunda e ilumina em todo o lado, ainda que em forma de sombra. O luar apenas nos deixa ver quando incide directamente, discriminação que não vem em meu auxílio.
Em sítios que antes pareciam completamente descobertos em relação ao sol, surge agora a dificuldade em perceber a configuração do solo.
Alguns sustos, mas nada de perigoso. Assustadores são alguns dos sons que emanam das redondezas.
Alguns são fictícios e feitos por mim ou pela mochila, facto que comprovo ao parar para averiguar.
Os ruídos vêm também de dentro de mim, como silenciosas queixas pelas dores provocadas pelas inúmeras bolhas. Se a caminhada de subida do dia anterior as fez nascer, é a descer que se sente exactamente onde cada uma delas se alojou. A inclinação do terreno faz com que os pés se encostem na parte dianteira da bota, sem hipótese de controlo da minha parte.

Começa a surgir também alguma luz de natureza distinta. O sol ainda não está na linha do horizonte, mas já começa a querer mostrar o seu esplendor.
Nunca tinha pensado muito no assunto. Faço um modelo tridimensional na minha mente: se a lua está a reflectir o sol e começa a querer seguir a passos largos para o ocaso, o sol terá de estar no seu encalço. Teria a substituição de luz em breve!

Páro a fim de apreciar com atenção o ambiente escurecido. É uma beleza encoberta, difícil de definir. A brisa, os cheiros e os ruídos são enaltecidos em relação à visão dominante durante o dia.
A magia da madrugada está presente e quase sempre por descobrir, dado o ciclo de sono que temos.

Chego ao ponto em que o trilho apenas se faz ladear por uma pequena vegetação; as pedras abundam no caminho. Não estou longe do sítio onde descansei pela primeira vez, mas também com maior risco de queda, dado que existem declives dos lados, não muito inclinados, mas quase sem fim.
Tropeço, quase que caio, sinto a canela dorida, mas o equilíbrio é restabelecido. Um grande susto que poderia ter tido consequências, não graves, mas seguramente sérias. Em breve passariam pessoas que me auxiliariam de alguma lesão imobilizadora.

No final do trilho uma visão que, com os devidos efeitos especiais, daria uma cena de um filme.
Um sem número de burros e cavalos preenchem o caminho. Grande parte era de cor branca e só faltavam os unicórnios apostos na cabeça, alguma neblina e uma música para dar o efeito idílico das “Brumas de Avalon”.
Não tenho dificuldade em passar. Já acabou o estreito trilho e aqui estou num sítio amplo de junção de destinos e partidas.
Passo e páro na fonte, a fim de descansar e de uma busca temporal por mais luz solar. Aproveito também para fazer a parca higiene pessoal possível.

Penso em quem ficou lá em cima e se já haverá movimentação. Não posso comprovar, mas não tenho muitas dúvidas. Os dias neste tipo de actividade são literalmente regidos pelo sol. Somente alguns desaparafusados como eu se aventuram numa hora puramente lunar para fazer uma descida desta dimensão.

Está na hora de empreender uma caminhada já trilhada no dia anterior, até um certo ponto onde deveria divergir.
Essa é a minha preocupação de momento: saber o que fiz de errado para chegar a um “beco sem saída”. Seria muito perto do local onde estive, mas ontem fintei essa análise por ter objectivos mais imediatos no horizonte.

Tudo igual e, no entanto, tudo diferente. Era assim que se apresentava a realidade à minha volta, simplesmente por haver uma luminosidade diferente para ser reflectida e apresentada à minha apreciação.
Esta era mais aprazível, mais suave não só à vista, mas também à pele, por onde sentia o fresco matinal.
Já tinha despido o casaco exterior e tinha apenas uma t-shirt de mangas compridas e um “pullover”, que não faltaria muito a ser também descartado.

Todos os sinais serviam, de novo, de factos para uma séria análise, acompanhada por aferição de coordenadas GPS.
Tudo ia conforme cartografado, não havendo dúvida até chegar junto da bifurcação não analisada no dia anterior.

Eis que surge a bifurcação de ontem.
Apresenta-se na minha frente uma opção de escolha que parece óbvia. O caminho da esquerda, tomado ontem, subia ligeiramente e, não fosse alguma cegueira momentânea tida ontem, não teria continuidade por muito tempo.

Sobre a direita, um caminho claramente a descer, que não parecia ter muito que ver com o mapa.
Havia, no entanto, um pequeno sinal indicativo de “Lavra”, pequeno e escondido o suficiente para não “gritar” a quem se aproximava. Uma escolha já tomada ficava agora cimentada por um bocado de madeira gravada com letras e colocada por alguém, na esperança de indicar a futuras pessoas os caminhos que deveriam escolher.

A descida continua, muito para além do que eu podia esperar e com curvas sem acabar. Muito diferente da linha suave mostrada pelo mapa, talvez com correspondência na altitude, se estivesse um pouco nada mais à frente do que pensava.
A minha localização conhecida não era propriamente exacta, pelo que só podia confiar na experiência e indicações encontradas.

Apresenta-se uma nova encruzilhada muito complicada e não será fácil tomar uma decisão.
Os caminhos são variados, as indicações florescem em várias árvores e não existe, definitivamente, correspondência no mapa com tal número de opções.
Faço uso de mais um banco, que também neste local fazia questão de existir, descarregando a mala e carregando a atenção no papel onde sigo o trajecto.

Tento ignorar as indicações que apontam por onde vim, tentando ver apenas por alto se não haverá algum “Lavra”.
Dos restantes, não consigo decifrar nada que me faça sequer lembrar, pela semelhança de nomes, algum local que fique pelo caminho.

Reparo em pequenas letras escritas, como que pequenas legendas auxiliares. Uma delas refere o que foneticamente identifico como “Lavra”. Tem uma seta num sentido diferente da tabuleta onde está.
Olho para o caminho indicado com muita dúvida no espírito. Parece mais uma pequena ravina cavada pelas águas da chuva do que um trilho de acesso para onde quer que seja.
Resignado por falta de outra opção viável, dou por terminada a análise e meto as botas ao caminho.
Pouco depois, estava a fazer uma curva para a direita e a perceber que um claro trilho se formava. Timidamente de início, mas bem pronunciado ao ponto de se passar uma ponte de pedra. Estava bem encaminhado pelas notas de alguma alma caridosa.

Em breve deveria fazer uma curva pronunciada para a direita, depois da qual estaria bem perto de uma última fonte e de uma capela. Não estaria então longe do que estava marcado no mapa como uma estrada principal.

Em vez disso, tenho uma surpresa, um “acidente” de percurso não esperado. O trilho acaba num portão fechado e uma curva acentuada para a direita e descendente. Claramente a continuação ia dar acesso a algo lá em baixo, ficando rodeada de duas encostas íngremes de ambos os lados.
O caminho e a esperada mudança de direcção para a esquerda, deviam estar bem em frente e não para a direita, como parecia ser a única opção. Nem sequer as poucas tabuletas, através dos seus escritos, me davam a mínima confiança.

Aproximo-me do portão - mais uma construção em madeira e arame do que outra coisa - e tento decifrar uma chapa de metal com uma frase bastante longa. Do grego ou bizantino, apenas percebo a última palavra “Lavra”.
Não seria um portão artesanal a ficar no meu caminho. Tomo por certo que diz que o portão deve ser conservado fechado e que o meu destino é por ali, pelo menos o destino mais imediato, o meu fado para as próximas horas.

Já estou de mochila às costas e aproxima-se um monge do outro lado. Abre o portão e ignora a minha pergunta meio verbal meio gestual, sobre a direcção que eu ia tomar. Apenas recebo um “Né”, por insistência e muito baixo. Espero não ter interrompido o seu eventual voto de silêncio, mas podia ter usado apenas um sinal de cabeça.
Fiscaliza que deixo o portão fechado, quase pronto para o fazer ele mesmo.
Estou a ficar bom a decifrar línguas que não percebo; devo ter apreendido bem a razão do sinal.
Só não percebo é o que faz aqui um portão no meio do nada. A única razão seria para manter todos aqueles burros e cavalos com que me cruzei naquela parte do trilho, ou limitar o circuito de animais de carga “não tripulados”.
Sinto-me menos “burro” agora.

A curva, ansiosamente esperada, era efectivamente logo de seguida, o que me deu uma sensação de pequena vitória. Uma cruz fixa na rocha assinalava simbolicamente o ponto de inflexão.

Pouco faltaria na quebra de monotonia do caminho: uma fonte e uma entrada numa estrada. Só o tempo seria algum, a distância ainda a estimava em 5 Km.

O caminho apresenta-se agora completamente descoberto do lado direito. O outro lado é composto pela parede rochosa que o caminho ladeia.
O efeito do sol na água obriga-me a parar para contemplá-lo.

Na chegada ao sítio da fonte, sou apenas presenteado com um sinal de poço a 50 m e uma indicação do caminho que quero noutra direcção.

Não faço o desvio por causa de um poço. Mais à frente penso que talvez tenha perdido também a pequena capela, mas já era tarde demais. Depois do erro de ontem, o que menos me apetece é voltar para trás.

Ando demasiado tempo ainda por trilhos, em relação ao que estimava. Sem pontos de referência no terreno, não consigo avaliar mais nada a não ser as coordenadas que me confirmam o que penso: estou a avançar na direcção certa.
Guardo o mapa e sigo apenas as indicações que vão aparecendo, inclusive quando o trilho parece desaparecer, mas uma tabuleta indica uma direcção onde temporariamente parece não haver passagem.

Oiço barulhos vindos de dentro do mato. Mais sonantes do que o normal, parecem vir de um animal de grande porte, pelo menos grande, quando comparado com os enormes lagartos que já vi.
Páro e um rufar centra-me a visão num javali, aliás, mais do que um. Decido não perder tempo a contar. Os javalis não estavam na lista de animais perigosos, não tinham veneno que me fizesse perecer inerte no chão, pelo contrário, far-me-iam saltar bem alto, caso decidissem que eu era uma ameaça e investissem contra a minha pessoa.
Fiquei ainda com a ideia de que o rufar era uma clara afirmação de território e não estava para lhes tentar explicar que tinha, efectivamente, uma autorização para ali estar por quatro dias.

Apresso a passada o suficiente para acelerar a saída do local, mas tentando não mostrar um movimento de fuga, apenas de afastamento.
Na verdade, mesmo que quisesse correr seria impossível. O chão irregular, a mochila às costas e as bolhas nos pés, seriam os impedimentos. Talvez não fosse verdade, em caso de única hipótese talvez batesse o recorde mundial dos 100 metros barreiras em trilho…

Estava afastado o sinal de porcos selvagens quando ouço novo ruído. Por momentos, a reacção foi de mais perigo. Poderiam ser mais membros desta espécie, que é a única que conheço ter a característica de se tornar selvagem. Um porco rosado e praticamente sem pêlo, que seja largado no mato, adquire o aspecto de um javali em pouco tempo.

Bastaram umas fracções de segundo para decidir que o barulho de um motor a diesel não poderia anunciar qualquer tipo de animal. Estava perto da estrada, como indicava o barulho que se afastava.
Tomo a única decisão possível num momento destes. Sento-me e descanso um bocado.

A estrada ficava apenas a uns 20 metros de distância, na próxima curva do caminho. O veículo ouvido deveria já estar longe dali quando me apercebi dele.
A estrada era uma estrutura de betão armado, que rapidamente foi substituída por terra batida.

Estimava agora uns 3,5 km até ao destino final traçado para hoje. Chegaria bastante cedo e teria de me ocupar com alguma coisa durante o dia.

Ao longe comecei a avistar algo que parecia um mosteiro. No mapa via dois nomes, mas sem correspondência com qualquer indicação de edifício. Facto estranho dado o tamanho dos edifícios que se apresentavam lá ao fundo.

Apesar da tecnologia GIS, o mapa parecia ter algumas lacunas. As fontes que passei estavam todas assinaladas, mas alguns trilhos e construções humanas pareciam ter sido ignoradas. Não seria desactualização do mesmo, vi muitos sinais de restauração de edifícios, mas o PDM da região devia estar inalterado fazia mais de um século. Todos os edifícios eram mais antigos do que muitos países.

Quanto mais me aproximo, mais reparo na grandeza do aglomerado. Um corpo principal de grandes dimensões, com alguns edifícios exteriores a compor o conjunto.

A estrada volta a apresentar-se como betão armado, mas de melhor construção.
Cuidadosamente estriado para melhor tracção e possível escoamento das chuvas e acompanhado de lado por uma pequena continuação em grandes pedras, como para servir de via pedonal. Estou a chegar à edificação que avistei pouco antes.

Avisto um heliporto após a linha de vista ser desbloqueada por uma pequena casa. Era a primeira vez que presenciava tal coisa por aqui. Estava no extremo sul da península e devia servir em casos de emergência.

Decido que tenho de investigar mais tarde onde me encontro agora. De momento quero apenas chegar a “Lavra” para descansar.
Vejo um pequeno autocarro e o condutor encontra-se sentado cá fora. Ficou visível somente quando desviei o olhar do edifício e observei o outro lado da estrada. Faz sentido, não tenho a capacidade de observar a 360 graus.
Questiono se estou no caminho certo e... não propriamente, pois o caminho termina aqui. Estou efectivamente em “Lavra” e, por isso, a imponência do local.
“Lavra” é o mosteiro número um, sendo o mais importante na regência e nas decisões da península.

Inicio a caminhada rumo à entrada e começo a perceber o que se passou. O tempo passado no trilho para além do que esperava levou-me bastante mais à frente na junção com a estrada.
Estava a chegar antes das 9:30 ao sítio de onde sairia amanhã num trajecto de retorno, só ainda não tinha definido como iria fazê-lo.

Vou entrando e observando como este mosteiro é diferente do anterior onde fiquei. Mais amplo, com bastante espaço lá dentro e edifícios interiores bem definidos.
Faz lembrar uma pequena vila medieval, com as suas muralhas fortificadas. Só não faz jus a esta descrição por ter varandas fechadas e coloridas na maioria das paredes exteriores.
Aproximo-me de alguém que parece ser um dos trabalhadores locais. Sou informado que está na hora do pequeno-almoço. Devo dirigir-me a um sítio, por ele indicado, e esperar pelo retorno do monge que dará a minha entrada.

Não demoro muito a começar a ver várias pessoas, que aparecem de um local incerto à visibilidade que tenho desde ali. Sigo-os, percebendo onde devo ficar para que consiga a esperada cama para a noite.
São duas varandas contíguas num 2º andar, onde várias pessoas se vão sentando também, para porem a conversa em dia.
Já existem bastantes bagagens, mostrando o movimento de saída já em curso. Deve ser a rotina normal que se vive todo o ano por aqui, quase tipo hotel de dormidas por uma noite apenas.

Identifico um monge, a quem mostro o interesse pela hospitalidade do local para a noite, que se seguirá ao longo dia ainda pela frente. Manda-me esperar num banco corrido, em frente à porta pela qual entra para algumas tarefas incertas para mim.

Sou presenteado com um café que começa a sair em quantidades industriais, mas em doses individuais, servido em bandejas que vão sendo apresentadas a todos os que por ali ficaram ou que vão chegando.
De seguida vem o livro de registo, a primeira e seguramente a última vez que vou fazer uso de um nesta visita de quatro dias.

Pairando sempre perto do local que me foi destinado para esperar, vou fazendo umas incursões para observar o que me rodeia. Vejo sobre uma pequena mesa uma folha com um título sugestivo: “Lavra-Karyes 6:45”.
Na primeira oportunidade que tenho, consigo confirmar com o monge o que parece óbvio perante a leitura. Escrevo o meu nome em frente ao número 1 de uma lista que já está pré-escrita até 30.
Está definido o próximo destino. Agrada-me poder ir de autocarro até à capital, vou poder conhecer também parte do lado Este.

O trabalhador que vi quando cheguei faz uma série de incursões à sala onde o monge fica a maioria do tempo, entrando e saindo sempre com o que identifico como as roupas de cama para a reposição de condições, para receber os peregrinos.
Sou pouco depois informado que deveria dar um passeio pelo local, pois dentro de meia-hora terei os aposentos prontos para me receberem.
Não o vejo como uma ordem, mas aproveito a gosto o convite explícito, para me inteirar do que reserva o local.

Faço um reconhecimento interno e externo do local, perdendo a noção do tempo passado. Nem tenho maneira de o saber, por completo descontrolo do relógio interno e muito menos verifiquei que horas eram quando comecei. O tempo aqui é muito relativo na medição e utilização do mesmo.
Existem poucos compromissos que necessitem de horas marcadas. Excluindo os dos transportes marítimos e terrestres, podemos resumi-los ao início da missa, pois todo o resto é encadeado de forma contínua.

Já fui informado dessas mesmas horas pelo monge, tendo-me fixado, de modo a simplificar a minha vida, na hora de início do serviço.
Inicialmente era às 17:30, mas foi corrigido depois para as 16:30, hora mais apropriada a um sincronismo com a experiência que tinha tido no outro mosteiro.

Sou rapidamente aconselhado a ir ao encontro de um outro trabalhador que me abre uma camarata de 12 camas. Está tudo impecavelmente disposto de forma simples, mas eficiente.
Sou ainda informado do azimute para a casa de banho: devo esperar 15 minutos antes de a utilizar, pois ainda se vai fazer a limpeza.

Impõe-se a escolha de uma cama. Sendo o primeiro a chegar, tenho tantas hipóteses quantas os signos do zodíaco.
Poderia escolher o número do meu signo solar, mas teria de ter um critério para qual seria a primeira, ou escolher pelas características coincidentes com o meu signo.
Não tenho conhecimentos de astrologia suficientes para tal e, como as camas parecem todas iguais, fico pela localização e pelas condições adjacentes.

A primeira à minha esquerda revela-se a melhor escolha. Para além de me poupar alguns metros na distância necessária a cada saída do quarto, tem uma cadeira de apoio e algo de grande valor ao lado: uma tomada eléctrica.

“Marco” o território e faço pequenos acertos logísticos antes de me deitar um pouco para deixar passar o tempo de limpeza do local onde pretendo ter um merecido banho.

Sou apenas perturbado do sono profundo em que mergulhei, pela entrada de um grupo de franceses. Se não são franceses, são pelo menos da língua nativa do Albert Camus.
Sou incapaz de identificar quanto tempo estive a dormir, mas por aproximações grosseiras, estimo umas duas horas.

Já de saída, os novos membros da caserna desculpam-se por me terem acordado, facto que até agradeço.
Faço-lhes notar a falta de toalhas, mas também não têm ideia onde procurá-las. Tento encontrar alguém que me tire a dúvida, mas em vão. Terei de fazer uso de uma peça de roupa; não será a primeira nem a última vez.
Com a sensação de ter sido atropelado por um camião, como outra barra de cereais. Não pretendo comer muitas mais, mas almoço é coisa que não existe por aqui e tenho de esperar pela refeição depois da missa.

A casa de banho é individual: chuveiro, lavatório e retrete à moda antiga… nada conveniente para quem fez tanto uso das pernas durante dois dias seguidos.

Abro a água quente e espero que atinja uma temperatura agradável, coisa que não acontece. Observo a existência de canalizações separadas e também um irradiador para aquecimento a água. Só a água é que teima em vir fria.
Será que o possível uso matinal de banhos esgotou a água quente e terei de esperar que a caldeira tenha tempo de aquecê-la? Espero mais um pouco na esperança de ser apenas a distância à fonte, mas desiludo-me.

A esperança de um repousante banho quente é agora apenas constituída pelo prazer em ficar limpo, sendo o resto substituído por um forte número de arrepios que obrigam a encurtar o mesmo. Poupa-se no aquecimento da água e na quantidade da mesma, boa estratégia.

De roupa limpa sobre um corpo lavado sinto-me como novo, apenas com a barba por fazer - opção para não vir carregado com o que me pareceu acessório. Duvido que algum monge possa fazer algum reparo neste aspecto; neste, ou no da roupa ou banho, tanto quanto pude apreciar nalguns deles.

Tenho em vista o pequeno miradouro em forma de coreto que vi lá fora mas, chegando perto, decido continuar o caminho em busca do cais lá em baixo.
O mapa mostra a sua existência e não tenho mais nada para fazer.

No caminho descendente passo por uma construção de aspecto recente que faz um barulho enorme. Sem conseguir decifrar o que será, apenas posso arriscar serem geradores a funcionar de forma frenética.

De lado, junto da casa, um sinal que já me habituei a ver em muitos sítios. Indica a obra em questão, o custo e a percentagem financiada pela comunidade europeia.
Da descrição, nem tento fazer qualquer análise. Para mim “é grego” e assumo que o seja para toda a gente.
O resto é mais ou menos claro, quase um milhão de euros vindos na íntegra dos fundos. Lembro-me do comentário que o holandês me fez no outro dia…
Sigo o rumo da “estrada” sempre a descer e a pensar que cada passo dado para baixo terá de ser compensado para subir.

Avisto o mar e o primeiro sinal de construção. Uma casa que se ergue sobre um penhasco e termina numa torre que parece ter sido roubada a um castelo. Mais uma vez, os andaimes que já me habituei a ver. Em frente, uma pequena construção em pedra, tipo mini-capela. Fica por aqui a urbanização do local. Lá mais abaixo apenas um pontão bastante degradado, onde se pode ver um barco arrumado sobre o suporte de um velho guindaste; dá a impressão de ir falhar quando a necessidade surgir.

Três dos quatro, supostamente franceses, já lá se encontram a explorar o pouco que o muro lateral, meio caído, proporciona. Faço o mesmo e demoro pouco mais de um minuto, bastante menos do que eles, mas por falta de alguém com quem comentar o que quer que seja.

A água tem uma cor esverdeada e é bastante cristalina. Até convida a entrar, mas para água fria já me basta o banho recém-tomado.

Inicio, no entanto, o descalçar das botas e meias para mergulhar os pés por um pouco.
Dois dos outros fazem o mesmo, mas continuam a tarefa um pouco mais além, ficando apenas de cuecas. Um deles deixa também as meias, quase que lhe chamo a atenção, mas percebo ser intencional. Tem medo de ferir os seus pés delicados nalguma rocha mais irregular.

Eu mergulho os pés e eles tanto quanto têm. Enquanto se afastam, vejo o amigo a ler um livro com um olho na roupa deixada no chão.

Na água, inúmeros peixes passeiam de um lado para o outro, mas sempre afastados de mim. Nada igual à experiência recente que tive em Malta num “Fish Spa”.
Aí, os peixes iniciavam logo o depenicar dos pés, em busca de onde comer alguma pele morta. Uma sensação inicial de cócegas, que se desfazia em massagem ao longo do tempo.

Olho para além do movimento criado pelos pequenos cardumes e observo o fundo rochoso. Reparo na aparente falta de anémonas que assumiria ser normal, vendo apenas ouriços-do-mar.
Sou transportado para a minha infância. As datas são incertas e só o local consegue ser aproximado o suficiente para se falar em exacto, dentro de parâmetros em que uns metros de erro são aceitáveis.
Actualmente, o pinhal para onde a memória me reporta já não existe na dimensão que tinha, pois a urbanização destruiu grande parte.
Estou em Vila Nova de Milfontes e talvez ainda tenha a idade de um dígito apenas.
Numa fogueira, ao fim da tarde, eram lançados os pobres ouriços ainda a mexer os picos e com alguma água a escorrer.
Ignoro como chegaram ali e de onde vieram, para além da ideia genérica que vivem nas rochas dentro do mar.
Após algum tempo no fogo, estavam prontos para consumo, isto depois de ligeiramente arrefecidos.
Os bicos, já queimados, eram facilmente limpos e o sabor a maresia que continham era simplesmente maravilhoso.
Não me recordo de como eram abertos, nem do aspecto interior, apenas de que alguns continham umas ovas rosadas que proporcionavam uma textura diferente na boca. Nunca mais tive oportunidade de comer este acepipe, que nem sei se foi uma vez única, ou uma sucessão de eventos no passado.

Começa a chegar uma carrinha ao porto, o qual tem aspecto de estar praticamente desactivado. Deve haver algum movimento que inclua também transporte de mercadoria. Decido que também é altura de me transportar ladeira acima.
Já na subida, reparo no retorno dos nadadores que se aventuraram bastante além do que eu faria, caso tivesse mergulhado.

Subida a passar debaixo dos pés, começo a pensar que deveria ter deixado o banho para depois.
Já estou a suar um pouco e abrando o passo, pois não tenho pressa de chegar a sítio algum. A paisagem é a mesma, mas mostra sempre aspectos que não se conseguem vislumbrar quando se caminha na direcção oposta.
Apoiado pelas poucas sombras existentes, percorro todo o caminho e dou por satisfeita a minha curiosidade das zonas envolventes. Estou finalmente a chegar de novo ao miradouro, preterido por um desvio nos planos.

É, de facto, mais do que um miradouro: é também a “sala de fumo”, onde se juntam todos pela beleza da vista que proporciona.
Uns lêem, outros conversam ou observam, outros ainda deitam-se conforme as possibilidades de espaço existentes. Nem todos fazem acompanhar as actividades anteriores de um cigarro.

Alguém de chapéu na cabeça, cara vermelha e pólo a condizer, olha-me de modo inquisitivo e, como que apontando para mim, pergunta-me se não nos vimos no barco.
Não o reconheço de imediato, mas era um dos austríacos com quem falei. Não tarda muito chega o meu interlocutor principal, que está muito interessado nas aventuras e desventuras da subida.

Oferece-me um copo de plástico onde vamos partilhando uma garrafa de água, enquanto lhe conto os acontecimentos, já na presença de outro membro do grupo. Tenho três pessoas aparentemente interessadas na minha subida e questionam bastantes pormenores. Parece uma curiosidade genuína.
Ficam especialmente interessados ao saberem que fiz a descida de noite e parecem nem conseguir acreditar.
Passaram a noite num local que não identifico pelo nome, nem o retenho na memória. Assistiram a uma cerimónia de missa que durou a noite toda. Eles escaparam-se a meio, para um descanso de recuperação necessário para hoje.
Possivelmente estiveram no mesmo mosteiro onde fui convidado a ir pelo grego que me dava lições de dogma dois dias antes.

A conversa continua, entre altos e baixos, no interesse que desperta de ambos os lados. Fala-se, então, de questões relacionadas com o “regime” da península; do eventual controlo que tem sobre quem ali está e porque está.

Eles estão convencidos que, para além do “numerus clausus” e de se ter de esperar algum tempo para vir de novo, existem outros factores em questão.
Um eventual sistema invisível observa quem ali vai, para que sirva de base a futuras decisões. O que acontece fora não interessa, não há perguntas a quem vem.
Apenas as interacções com e dentro do local são consideradas relevantes, adicionam.
É a terceira vez que ali estão e a última foi há quatro anos atrás. Tinha ficado com a ideia de que era a segunda, mas nunca tinha feito a pergunta directamente.

Foi a segunda vez que subiram ao monte, mas tanto nessa como na primeira, ficaram em Agni Anni; não no mosteiro, mas numa das casas existentes na subida e habitada por monges.
A experiência que tiveram, quando iniciaram, fizeram-nos voltar ao mesmo local, quase em modo de agradecimento, mas muito tinha mudado.
A diferença não podiam apontar ao certo, mas seria algo na maneira como foram tratados, sempre muito bem, mas com algumas reservas nas respostas. De ambas as vezes, os monges cozinharam para eles e foram muito cordiais.
A diferença começou pelo facto de o monge principal já não lá estar. Monge este que falou muito sobre aspectos interessantes e desconhecidos para eles.
Não seria um facto muito relevante, as coisas mudam, mas foi estranho não conseguirem resposta sobre o que aconteceu com ele.

Falam de gravuras pintadas à mão e começa aqui parte da trama onde pretendem chegar. Tal como da primeira vez, encomendaram duas gravuras a um dos monges. Esperavam que fossem recebidas na morada indicada alguns meses depois, como aconteceu antes, mas tal não sucedeu.

Passados seis meses, fizeram uso dos poucos dados que tinham num recibo, feito à mão e selado com um carimbo, para tentar uma comunicação com o monge.
Mais tarde, pela falta de resposta com os serviços centrais na capital, descobriram que afinal tinham pago em dinheiro mais de 800 euros por cada uma.

Sem resposta de nenhuma parte, receberam, passado algum tempo, o dobro das gravuras encomendadas.
Apenas isso, nem uma missiva a acompanhar o pacote, coisa que ocorreu da vez anterior. Desde esse momento, os pedidos efectuados foram sucessivamente recusados, sempre acompanhados de uma justificação muito vaga, relacionada com a disponibilidade de vagas.
A insistência, e apenas isso, fê-los voltar passados quatro anos de privação, a um local que lhes parece trazer bastante fascínio.

A conversa segue para a questão da materialidade ou falta dela. Cada monge está destituído de qualquer posse material.
Talvez seja plausível achar “seus” alguns pertences de valor pessoal e de pequena dimensão, que caibam numa pequena mala.
De resto, não existe propriedade individual nas organizações monásticas.
Contam a história de uma passagem por uma casa onde um monge vivia parcamente e onde chovia dentro.
No tecto notava-se a falta de uma parte, por onde corria agora a copiosa chuva que se sentia.

Espantados com a impassividade observada e sem saber como abordar o assunto, lá lhe chamaram a atenção para o facto.
Um encolher de ombros, uma pequena referência à idade avançada, mas no fundo a consciência de que, quando um dia fizesse uma saída inevitável de alguns dias, chegaria para ver que alguém tomou os “seus” aposentos.

Falamos do plano para o dia seguinte e continuam a pensar ir de barco, só mudaram o ponto onde vão tomá-lo.
Não percebo bem onde é, mas inclui uma caminhada de cerca de 3 horas para lá chegar; vão sair perto das 5 da manhã.
Informo-os da minha ida de autocarro, no fundo estamos a fazer a península em sentidos contrários.

Alguém comenta a questão da temperatura, ou falta dela, da água. Não fui o único a tomar um duche refrescante e faz-se menção de que a camarata onde estamos é só para não ortodoxos. “Esses devem ter água quente” - brinca um deles…
Vão dar uma volta pelo exterior e eu vou entrar de novo. Temos pontos de encontro, mas em tudo o resto parece que andamos desarticulados.

Dão-me mais uma vez os parabéns pelo feito do dia anterior e dizem que apenas cerca de 5% tenta fazer a subida e grande parte não chega ao topo.
Pela amostra que vi, o número de pessoas era mesmo reduzido, mas de todos eles apenas tinha a certeza de que um não concluiu o feito, mas fico-me apenas pela alegria, esquecendo as contas.

Vagueio pelo recinto, na certeza de ir acabar onde finalmente me vejo de novo: nas famosas varandas onde pairam grande parte das pessoas que, de momento, nada mais têm para fazer a não ser conversar ou simplesmente existir.
Contam-se pelos dedos de uma mão as pessoas que se fazem valer de um livro como passatempo.
Tenho a oportunidade de comer mais um dos doces que aparecem nas mesas, devido à chegada de mais caminhantes.
Verifico também que a lista de inscritos para o autocarro já soma bastantes mais pessoas no lado direito; vão para quase sessenta os que pretendem tomar este rumo.
É possível que grande parte também tenha de sair da península amanhã. Este mosteiro está no extremo sul e configura um destino “final” bastante plausível.

Com ar de quem acabou de correr uma maratona, chega o Thomas e os amigos. Passa das 16:00.
Desculpa-se pelo atraso na passagem pelo abrigo, como quem toma a minha ausência pelo avançado da hora em relação à estimativa inicial.
Escapo-me de ser eu a desculpar-me em primeiro lugar, mas tranquilizo-o nesse aspecto, dizendo que saí de madrugada.
Facto que, em vez de tranquilizá-lo, só não lhe dá um susto maior por eu estar ali, obviamente, são e salvo.
Talvez não são, deve pensar ele, mas seguramente salvo, excepto de mim mesmo.

A conversa é abreviada por ele devido a outras necessidades burocráticas e líquido-gustativas que serão seguidas de descanso e aprumo pessoal.
Continuo a minha observação geral do ambiente em volta e vou reparando em cada vez mais pormenores.
O monge “recepcionista”, na falta de muito movimento, conversa com os presentes.

Um sinal bilingue afixado descreve algumas regras do local. Entre elas uma que no outro mosteiro não notei, apesar de ter sido relatada por alguém. Os “aliens” à religião aqui usada devem ficar na parte de trás, facto que não me incomoda nada, pelo contrário. Apenas pretendo estar ali como observador passivo e visual, dado que nem a língua entendo.

Já tinha reparado no sinal, mas só agora lhe dei a devida atenção, atenção logo virada para o facto de se estarem a aproximar as 16:30.
Dirijo-me para a igreja e vou encontrando algumas pessoas pelo caminho. Algumas com quem já travei conhecimento e outras com quem já existe uma cumplicidade implícita, pelo facto de sermos estrangeiros e, talvez mais importante aqui, não ortodoxos.

Faço a entrada pelo corredor externo e reparo numa configuração exactamente igual à outra igreja onde estive dois dias antes.
Pelo meio das pinturas, gravuras e tudo o mais que é apresentado à vista, tomo lugar num dos bancos traseiros tentando, tanto quanto possível, manter o anonimato.
Não consigo, um monge diligente de uma possível missão que lhe foi dada, vai verificando a proveniência de todos que não iniciam o, já familiar para mim, deambular pelo espaço em reverência a vários pedaços do local.

Num inglês muito bom fazemos as trocas de informações necessárias, tanto para sua decisão, como para mostrar alguma simpatia pela pessoa abordada. Não se fica por perguntas e respostas secas, mas acrescenta algo mais à conversa, no fundo irrelevante, mas dá para quebrar um pouco o gelo e até gerar alguns sorrisos.
Sou confrontado com uma pergunta simples, “Papi?”. Baralho-me, que quererá ele dizer? Tento aferir a semelhança com “Papa” e questiono se se refere ao Vaticano.
Anuí e fico sem saber o que responder, estará a perguntar-me se sou o Papa? Já se referiu, em tom de orgulho na conversa, que em Portugal temos Fátima e fizeram-se algumas piadas. Será isto mais uma?

A medo, respondo que não sou o Papa, mas logo vejo que não era a resposta pretendida. Aborda de uma forma mais explícita o que pretende saber. De que religião sou eu? Descarrego o habitual “católico”, mais por nunca ter escolhido, do que por alguma vez o ter realmente jurado.
“Papi!” afirma ele de novo, ficando eu a saber a “alcunha” dos católicos por estes lados.

Sou então direccionado para o outro lado da sala, onde se vai fazendo a concentração dos da “minha laia”.
O questionário prossegue a quem ali está ou se junta. Já são várias as nacionalidades. O dinamarquês também chegou, os austríacos vão aparecendo, os franceses (são mesmo franceses) entram em magote.

O monge vai fazendo questão de mostrar a todos a sua anterior presença nos territórios respectivos. Chegou de barco, passou de comboio e esteve mesmo lá a trabalhar por algum tempo.
Sobre Portugal apenas refere que esteve várias vezes ao largo. Refere o Cabo de São Vicente e a sua capela. Foi marinheiro mercante durante muitos anos, mas já não transparece tal condição.

Uns sérvios tímidos são rapidamente afastados da traseira e “chutados” à oração activa, após confirmarem a religião. Possivelmente preferiam ter ficado anónimos, podiam ter dito ser “Papi”, julgo que seria aceitável.
O escrutínio abranda e entre pequenas palavras do nosso lado, observação do ritual, que já me é familiar, e algumas piadas, vamos também fazendo uso dos “smartphones” para captar algumas imagens proibidas.

Algo inesperado acontece, ainda mais quando somos sempre incitados a participar na cerimónia como ponto central do local. Somos informados pelo mesmo monge, agora de cara mais séria e tom grave, que a cerimónia de hoje está vedada aos não ortodoxos.
Somos de seguida encaminhados para o corredor exterior, onde apenas permanecem alguns de nós; os outros, visivelmente frustrados, abandonam o local ficando no pátio exterior.

Sou dos que fica, possivelmente por não ter melhor sítio para onde ir e pela companhia dos austríacos, que representam a minha relação mais estreita.
Um deles é claramente muito religioso, já deu para me aperceber em várias ocasiões, tendo a última sido quando ainda lá estávamos dentro. Foi dos únicos a ir acender uma vela, fazendo uso da entrega voluntária de dinheiro numa caixa ao lado.

Sento-me num banco corrido quase em frente da porta principal. Esta está ladeada à esquerda por cadeiras de madeira idênticas às do interior e, do outro lado, por uma feita inteiramente de pedra, precedendo outras quantas das “normais”.
Estou em terreno de regras ainda incompreendidas e factos fora do meu conhecimento.
Não entendo a existência desta singela pedra em forma de cadeira, mas assumo não ser para utilização normal.
Um dos franceses tem um entendimento diferente do assunto e faz uso da mesma em modo de pose, para ser amplamente fotografado pelos colegas.

Como já estava habituado, prossegue o corrupio de pessoas a entrar e a sair. Um monge passa sem um reparo que seja, à utilização da cadeira que se destaca das outras.

Alguns dos tardiamente chegados, vão entrando e ficando indecisos sobre o que fazer perante o facto de estarem pessoas do lado de fora. Acabam por entrar depois de alguns momentos.

Chegam o Thomas e companheiros. Vêm agora com um ar bastante mais fresco e ainda se nota o efeito de um banho recente, possivelmente de água quente.
Não entram logo e, quando o fazem, é temporariamente. Ficam na mesma ala que eu grande parte do tempo, falando e dando explicações sobre os motivos que proliferam nas pinturas em forma de parede.

Algumas vezes fazem-no em inglês. Recordo-me que afinal não é a primeira vez que reparo nisso, pois devem ter entre eles algum estrangeiro.

Já o francês tinha sido expulso do seu poleiro pelo monge que acompanhava a entrada inicial. Afinal eu tinha alguma razão quando algo também estranho ocorreu.
Eu estava ainda sentado no mesmo lugar e já muitos dos outros resistentes espreitavam pelas janelas, quando outro monge veio indicar-nos que devíamos entrar.
Teria acabado, pensei eu, a parte vedada do cerimonial. Somos conduzidos até alguns lugares vazios na parte traseira da antecâmara.

A cerimónia decorre de forma nova para mim. A maioria das pessoas estão semi- prostradas no chão, a fazer lembrar mais uma posição voltada para Meca, do que aquilo que tinha conhecimento ser pratica cristã.

Não demora muito a sermos, quase violentamente, expulsos de novo pelo monge encarregado de nos vigiar. Isto perante as súplicas em forma de desculpa do austríaco mais devoto. O monge apenas diz irritado: “Foi um erro, não é função dele.”

Restou-nos esperar pelo fim da missa que nos levou a seguir os outros para o espaço exterior em frente.
O “Trapezi” fazia com a igreja um pequeno pátio e era possível percorrer menos de 20 passos para ir de um ao outro.

Esperei de pé pelo momento da entrada com alguma expectativa. Iria entrar no refeitório milenar, comer a primeira refeição digna desse nome em 48 horas e talvez ter a possibilidade de provar um vinho local.

O “Trapezi” era o original desde o início do mosteiro. Alguns dos outros mosteiros já tinham mudado as instalações ao longo do tempo. Bastava no entanto saber que este era o mosteiro mais antigo, para ter a certeza de ir entrar no primeiro “Trapezi” em existência, desde a formação desta comunidade.
Quanto à refeição, mantinha algumas reservas derivadas da experiência anterior, não na qualidade, mas na quantidade disponível.

A entrada não foi imediata. Da última vez fomos conduzidos sem interrupção da refeição do espírito para a do corpo. Aqui impunha-se uma pausa para a digestão da alma; como fiquei sem esta, ansiava ainda mais pela física.
Fui informado de que haveria novo serviço depois do jantar, talvez para redimir a não participação de parte dos visitantes.
As horas eram incertas e a minha disposição era dúbia.

Sem vontade de tomar decisões imediatas, voltei a minha observação para o monge que anunciava agora a entrada, fazendo uso de um sino no qual batia com um tipo de martelo de pedra.
Os monges iniciaram a entrada, dando depois continuidade aos restantes.
Tal como esperava, as mesas estavam já todas compostas. Eram mesas de pedra maciça, onde já se podia ver mais do que eu esperava, o que foi uma agradável surpresa.
Na parte mais central da mesa havia pão, azeitonas e queijo fatiado. Tudo distribuído de forma a ser acessível a toda a mesa.
Podia ainda ter-se acesso, pela passagem de mão em mão, a laranjas e ao tão esperado vinho. Da água poucos fizeram uso, mas havia.

Directamente na minha frente estava o que, no fundo, foi a primeira coisa em que reparei: um generoso prato de esparguete com queijo ralado e atum, acompanhado de outro prato com salada, apenas de alface. Podia ser uma salada portuguesa, com certeza!

O tempo para comer era limitado, já o sabia. Desde o toque da sineta então dado até ao próximo, não haveria muito tempo, nem desculpas para não nos levantarmos, iniciando a saída pouco depois.
Ao som do monge que lê as escrituras inicio a refeição de forma ávida. Um misto entre pressa e fome misturam-se na rapidez com que tento dar algum avanço confortável à comida.
Sou normalmente criticado por comer muito rápido. Já nem falo em relação às teorias de mastigar os alimentos vezes sem conta, mas sim em mastigá-los mais do que meia vez.
Aqui, no entanto, pareço ficar atrás de todos os outros. Será que me desabituei de comer?

A pessoa ao meu lado faz uso do jarro transparente com um líquido de néctar a lembrar mel para temperar a salada; aquilo que pensava ser o vinho.
A esperança cresce logo de seguida, pois outro usa realmente o azeite e o vinagre que estavam do outro lado.
O vinho passa a rodar, de mão em mão, para ser colocado nos recipientes certos: os copos.

Vou distribuindo os esforços entre as várias componentes deglutíveis para tentar provar um pouco de tudo; nem as azeitonas quero perder.
O repasto é suficiente para todos e não há disputas de quantidade, apenas de como melhor distribuir o tempo para conseguir ingeri-las.
Terminada a laranja, dou por finda a parte principal da refeição e, na impossibilidade de pedir um expresso e a não necessidade de pedir a conta, relaxo um pouco.

Faço-me servir de um pouco mais de vinho branco para saboreá-lo melhor. Entre os goles, que me sabem agora melhor e as observações visuais que faço ao redor, consigo ainda tirar umas fotos para registo posterior.

O som da sineta ecoa na sala e urge terminar o vinho de um último gole, enquanto nos dispomos em corredor para sair após a passagem do último monge.

À saída, um monge faz “guarda de honra” a todos os que abandonam o local e se dispõem agora no pátio de volta à conversa.

Entro num estado de sonolência, que me dá uma perspectiva do que vejo tal como se fosse um sonho. As palavras que troco são poucas e circunstanciais.
O Thomas e o seu grupo falam agora com um homem que ainda não tinha visto aqui. É o mesmo que vi subir em último lugar para o abrigo no dia anterior e ainda mantém a fita azul na cabeça.
A esperança de ter um café é pouca, mas dirijo-me para as varandas a fim de averiguar essa possibilidade. Estão vazias, à excepção dos poucos que entram e saem, de onde suponho serem os aposentos para os ortodoxos.

Aproveito para observar mais em pormenor alguns dos escritos e objectos ao alcance e reparo em dois relógios que até agora não tinha visto.
Um tem a hora que estou habituado a ver, o outro nem posso dizer que esteja noutro fuso pois apenas conheço e é raro, uma diferença na ordem de quartos de hora.
Este tem uma hora completamente alheia a estas regras e assumo ser a hora bizantina.
Não resisto em tirar uma foto, mostrando a hora no meu telemóvel e o relógio como pano de fundo. Daqui a uma hora será o início de um novo dia para os monges e, para mim, apenas o começo do pôr-do-sol.

Vou ao quarto repousar por uns momentos, que se transformam numa noite inteira. Com a sensação de ter presenciado entradas e saídas do quarto algumas vezes, acordo para verificar que todas as camas estão ocupadas.
Não verifico as horas e limito-me a vestir algo mais apropriado para dormir. Não demoro muito a seguir o rumo onde o sono me tinha deixado.

Capitulo 5 e último.

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