Athos - Capítulo #1/5

Nota prévia: Este livro tem como objectivo apresentar os pensamentos, descrições e factos vividos na altura do relato. Foi, por isso, escrito de forma a representar o mais fielmente possível o que na altura aconteceu. Existem incorrecções que são fruto das observações e do conhecimento existente na altura. Algumas correcções já seriam possíveis mas, no entanto, trairiam o modelo escolhido. Este livro não deve ser usado como documento de base para nenhum fim “científico”, devendo ser lido como “ficção”.

Agradecimentos: Em especial ao meu irmão Jorge, que me deu a conhecer a existência deste local, e à Cláudia, que me proporcionou a oportunidade de "desaparecer do mapa" durante quase 5 dias. Agradeço, também, a todos os desconhecidos que se cruzaram comigo e/ou tornaram esta viagem possível. Resumindo, agradeço a todo o Universo que conspirou a favor da concretização da viagem. Um agradecimento “técnico” à Susana Graça pela revisão e propostas feitas ao texto sem as quais a qualidade do livro não seria a mesma.

Athos, viagem dentro de um peregrino

Dia 0 – A ida (31.05.12) Toca o despertador.

Estava programado para as 6:30, hora a que costumo ir correr à quinta-feira. O dia não vai ser todo normal, mas opto por manter a rotina na parte da manhã. Recentemente mudei o percurso pois o antigo já se tornava pesado pela repetição. Não estando totalmente familiarizado com as distâncias e, absorvido pelos pensamentos, acabei por fazer 11 Km em vez dos habituais 10.

Tinha preparado a logística no dia anterior. Tal resumiu-se a enfiar para dentro de uma mochila emprestada o que mentalmente já tinha anotado, coadjuvado por umas notas num post-it onde apontei algumas coisas mais importantes.

Ultimamente não tenho tido muito tempo para uma programação mais cuidada e ontem foi um dia particularmente ocupado. Tarefas de última hora e a graduação do Martim, seguida de um jantar, retiraram a derradeira oportunidade para uma preparação mais cuidada. Em resumo, não poderia perder muito tempo agora com a viagem para conseguir adiantar trabalho e não deixar nada por fazer antes de partir.
A manhã correu bem. No pouco mais de uma hora útil que tive, consegui acabar o resto do trabalho que ficou pendente do esforço de ontem. Em teoria só me faltava uma reunião onde ainda faria algum trabalho mais automático. É uma tipica reunião de acompanhamento quinzenal e não sou o anfitrião, por isso muitas vezes aproveito para avançar em tarefas mais administrativas que não precisam de toda a minha atenção. Intervenho e comento nas alturas devidas e os receios de aparecer algum impedimento de última hora para a viagem começam a desvanecer-se.

Pelo sistema de messaging interno, surge um Pop Up no canto inferior direito, que vem do chefe. Abro meio a medo. O sistema está ligado ao Outlook e mostra que ele está numa reunião. Do lado dele deve ver o mesmo em relação à minha disponibilidade. A pergunta é dúbia e questiono de volta para esclarecer o que realmente pretende. Fico esclarecido mas com algum atraso, está mesmo em reunião e não dedica toda a atenção à comunicação em curso.

Compilo a informação pretendida que se resume a alguns números, mas opto por incluir ainda mais informação acessória para o caso de necessitar… No fundo respondo a tudo o que a pergunta inicial poderia conter. Isto na esperança de que não precise mais de mim… Falta pouco menos de meia hora para sair. Mantenho a janela aberta para ver se mostra sinais de estar a escrever. A janela mantém-se impávida e serena como uma folha de árvore num dia sem brisa. Bom sinal!

Terminada a reunião com uns 10 minutos de atraso, mas com boas notícias de negócio, a conversa vira-se para a minha ida. Desejam-me sorte e alguns comentários fazem-me ver que conhecem pouco do sítio. Na verdade não conheço pessoalmente ninguém que já lá tenha estado, facto que me agrada mas, por outro lado, deixa uma lacuna no conhecimento prévio que poderia ter adquirido.

Li muita coisa, alguns relatos da subida ao Monte Athos, mas nada que realmente me tenha dado condições para programar algo que incluísse caminhadas entre mosteiros. Nos últimos dias limitei-me a fazer reserva num hotel na vila de entrada (Ouranopoli) e a primeira noite de dormida num dos mosteiros. O resto do plano ficou em aberto.

Na minha secretária verifico uma vez mais as tarefas a serem feitas. Uma ficou por fazer, não recebi o que necessitava para continuar. Estava a tentar terminar algo antes do período normal e não correu bem. Esqueço o assunto, são uns relatórios semanais e a sua falta não vai trazer mal ao mundo.

Arrumo o PC para já não voltar e na saída ainda me faço munir de uma lacuna logística da qual me lembrei durante a manhã. Um rolo de papel higiénico! Será o patrocínio do meu “patrão” para esta epopeia. Não me parece que alguém lhe vá dar melhor uso do que aquele a que eu o destino. Guardo-o na mala e sigo para o carro onde largo tudo, com o propósito de ir comer qualquer coisa.

Opto por uma salada e um sumo. Prefiro não comer nada pesado para não me dar sonolência na viagem e retorno ao carro sem resistir a verificar os emails no telemóvel. Deixei um “Out of the Office” com referência a que não tinha acesso ao email mas a experiência dizia-me para ser prudente. De facto, a maioria das pessoas não lê com atenção estes retornos automáticos, o que pode gerar dissabores… GPS devidamente colocado no lugar já a mostrar o ponto de destino. Foi programado na tarde anterior, mais para verificar a existência do local de destino que para saber distâncias. Tal como grande parte das localizações pequenas (e algumas nem tão pequenas) apenas reconhece um ponto no mapa. Não será problema, Ouranopoli não é grande e será fácil encontrar o hotel. Teoricamente o cérebro de sílica calcula cerca de seis horas e meia para chegar ao destino, mas a experiência diz-me que devo ganhar pelo menos uma hora pela prudência de cálculo que utiliza nas velocidades recomendadas. O importante é ainda chegar com luz do dia para me orientar mais facilmente.

Saio de Sófia pela estrada que já fiz algumas vezes. Serviu-me de acesso a duas idas à Macedónia, uma à Grécia e ainda uma visita interessante a umas festas populares numa vila chamada Kovachevtsi. Opto por não seguir na íntegra as indicações do Gervásio Pereira da Silva (GPS) cortando à esquerda por uma estrada nacional em vez de gastar mais tempo e Km's a percorrer um pequeno troço de auto-estrada. Já lá vai o tempo em que seguia o GPS à risca por estas bandas, agora já arrisco caminhos que considero melhores usando-o apenas como guia.

Chego a Pernik, ou melhor, entro na região sem entrar na cidade. O caminho para a Grécia passa por, literalmente, virar à esquerda antes da cidade (se tal se pode dizer em relação a sair numa rotunda na terceira saída tal como o GPS sempre gosta de dizer). Quando se vai para Skopje ai já se passa no interior da cidade e a sensação não é agradável. Uma cidade decadente da era industrial com muitos edifícios abandonados e encimada por muitas chaminés na sua maioria inactivas. Existe um facto interessante que me foi apontado por um búlgaro - existe uma fábrica de vidro ainda semi-activa mas que tem as grandes janelas todas partidas… casa de ferreiro espeto de pau! Pernik foi ainda o epicentro do maior terramoto na Bulgária das últimas décadas. Foi no dia 22 de Maio e vivi em pleno os acontecimentos até com algumas situações caricatas. Pela proximidade ao epicentro e estado de conservação de edifícios os estragos foram aqui de alguma dimensão, ao contrário de Sófia.

Pernik para mim é tipo uma lua a gravitar em torno de Sófia, passo por lá várias vezes e existem alguns episódios iniciais na minha vinda para a Bulgária que a referenciam.

Participei num almoço quase por coincidência e pouco depois da minha chegada. Estávamos em Setembro e o tempo incrivelmente quente para a ideia que tinha da Bulgária nessa altura. Quando chegámos estava mais calor do que o que se fazia sentir em Portugal. O local era muito central. Junto do estádio nacional, num parque apelidado como “parque central” e dedicados, jardim e estádio, a Vasil Levski - um herói nacional da revolução. Dava, ainda, nome a uma equipa de Sófia mas com um estádio com outro nome, Georgi Asparuhov. O restaurante fica numa pequena ilha inserida num lago artificial chamado Ariana, proporcionando a possibilidade de ficar bem junto da água conforme a disponibilidade de mesas. Foi o caso desse dia. Ficámos numa mesa acessível por uma pequena escadaria e isolada de todas as outras. Só duas mesas destas existiam no recinto.

Quatro casais compareceram, ou mais propriamente se fizeram representar, no repasto que se prolongou quase ao ponto de se tornar quase jantar. Eu, a Cláudia e os miúdos constituíamos uma família atípica para o encontro, dado que éramos todos portugueses. Havia um casal luso-búlgaro e outro luso-australiano. Juntou-se ainda outro membro que não reforçava a típica família nacional pois encontrava-se sozinho na Bulgária viajando regularmente para Portugal, mais uma representação “tuga”. Vivia fora de Sófia e mencionou ter um carro alugado com matrícula de Pernik, os restantes riram e na altura eu não percebi. Só mais tarde vou perceber a piada que está relacionada com o facto de os condutores de Pernik serem considerados perigosos por suposta falta de habilidade ao volante.

Num almoço que tive uns tempos depois com um colega de trabalho ele mostrava-se um pouco transtornado com um acidente que lhe tinha ocorrido. Um carro não respeitou as regras de trânsito e enfiou-lhe uma porta para dentro. O engraçado, e ria sobre esta parte, é que tinha tido um encontro com o estereótipo de Pernik, um VW Golf Preto com quatro ciganos dentro. Estava em conversações para accionar o seguro de danos próprios pois o outro nem seguro tinha.

Quando falo em seguro de danos próprios é com alguma propriedade. Vim a descobrir mais tarde que existem aqui duas apólices distintas. O Kacko (casco) que é o seguro normal e obrigatório e o que cobre danos próprios, roubo etc. Após comprar um carro em segunda mão para uso da Cláudia, fiquei a saber que para accionar este seguro adicional não basta pagar, tem de se levar o carro a um dos locais disponíveis numa lista para o carro ser fotografado e marcado. A principal razão para fazer esta apólice é o roubo, não tanto para ser ressarcido em caso de furto mas para, de facto, este não acontecer. Não vou fazer grandes relações que possam existir mas limitar-me a relatar dois factos. Façam a junção dos pontos se assim acharem conveniente.

No primeiro dia em Sófia combinámos com uma portuguesa encontrarmo-nos no hotel onde residíamos temporariamente. Já mantínhamos contacto por email fazia algum tempo. É irmã de uma amiga de trabalho em Portugal, que casou com um búlgaro e vive em Sófia não tendo planos de voltar, pelo menos explícitos.

Para além da agradável surpresa de trazer um salgado típico da Bulgária como boas vindas, tivemos oportunidade de receber dicas interessantes… ainda mais quando vistas aos olhos de uma compatriota. As comparações feitas quase sem querer às diferenças ao que em Portugal estávamos habituados eram, sem dúvida, de muita utilidade.

Mas nem tudo era pura informação, dois anos de vivência por ali já tinham muito mais que contar para além de relatos factuais. A sua casa ficava perto do hotel e estava em licença de maternidade mas sem carro. Tinha sido roubado recentemente logo depois de não terem renovado o referido seguro de roubo. Estavam na dúvida se fariam a renovação. O rebento recente fazia-os ponderar mudar de carro para um mais apropriado ao transporte de um bebé e respectiva lista de items sempre necessários. Alguém foi generoso o suficiente para tomar a decisão por eles…

Uma outra história relaciona-se com o facto de me terem contado não se poder deixar, nos primeiros dias, um carro novo na morada dada na seguradora. Só após a efectiva activação da apólice através do processo já acima descrito.

Muitas outras coisas me passam pela cabeça no tempo em que tenho a cidade sobre linha de vista. Aqui poderiam ter sido gravadas as cenas de dança em fábricas abandonadas de uma versão “Footloose Bloco de Leste”.

Sigo em direcção ao Sul por uma estrada de duas faixas em cada direcção, facto que sei ser temporário. Mais uns 50km e estarei de volta às boas estradas búlgaras e ainda me esperam muitas obras pelo caminho.

As paisagens circundantes mostram-se verdejantes apesar do calor intenso que se vai sentindo. Existem sempre montanhas algures no campo de visão e alguns pontos de neve nos locais mais altos.

Já conheço grande parte do caminho e avisto um sinal que me faz replanear o trajecto. ”Rila” refere o mesmo, enquadrado em desenhos de cor castanha indicativa de um monumento.

Já visitei este colosso de beleza no regresso de uma viagem familiar a Tessaloniki, mas ficou algo por ver que era bem mais perto da estrada principal que percorro - Stob’s Pyramids. Existem algumas lendas sobre como foram formadas, mas desfazendo a magia resume-se ao efeito da chuva, vento e neve.

Chego ao desvio e faço a respectiva curva, lembro-me de pouco mais à frente ser visível a indicação de que ficam a 2 km. Na altura não o visitámos no retorno de Rila, não me lembro bem porquê, mas possivelmente devido ao avançado da hora e das crianças terem escola no dia seguinte. Avisto polícia na curva assim que viro. Estão na direcção contrária, o que não significa muito, mas pelo menos dificulta ser escolhido apesar de não haver muito trânsito. Talvez na volta seja contemplado. O número de polícias que se vê nas estradas búlgaras é incrível e já ouvi comentários jocosos de estrangeiros sobre esse facto. Disse-me um vez um local que sai mais barato ter forças policiais na estrada do que radares (que de facto se vêem poucos).

Até hoje apenas fui parado uma vez. Era domingo e perto das 13:00. Estava no centro da cidade acabado de chegar de uma volta de bicicleta com um grupo do qual me fiz “afiliado” no FB. Ao fazer uma curva fui imediatamente mandado encostar, tinha praticamente saído do estacionamento depois de acondicionar a bicicleta. Percebi logo o porquê: levava as luzes desligadas numa altura no ano em que é obrigatório o uso contínuo dos médios. Encostei e usei a técnica de descontracção e estupidez natural. Expliquei em inglês que não falava búlgaro e entreguei os documentos. O facto de ser português trouxe-lhe um sorriso à cara que me pareceu de satisfação e não de gozo. Possivelmente ficou com uma história para contar aos colegas.

Explicou-se por gestos, tinha de ter as luzes ligadas. Agradeci com um ar espantado como quem recebe uma informação valiosa pela primeira vez. Após a admoestação verbal, ou melhor gestual, deixou-me ir sem nenhuma coima.

O caminho é estreito mas suficientemente amplo para duas faixas de largura confortável. Ladeado em ambos os lados por árvores, faz lembrar imensos outros caminhos em linha recta que já percorri. Lembro-me sempre de um acesso a uma casa senhorial dos tempos antigos. Só o alcatrão destoa nesta imagem romântica.

Passo a vila de Stob depois de virar à esquerda na direcção indicada e chego a um pequeno descampado onde se vêem alguns carros, uma pequena loja e uma cancela com um pequena cabina de lado. É onde se paga. Tudo aqui é pago… barato, mas pago.

Dirijo-me à loja para comprar água e questiono se é por ali e se fica longe. A pergunta é quase retórica; a única maneira que encontro de receber alguma informação. “One hour to go up” recebo em resposta num inglês com certeza decorado para o efeito. Uma hora? Será assim tão longe? “Very high” vem de novo outra resposta com pronúncia búlgara, como a querer desfazer alguma dúvida na minha expressão facial. Que raio, estamos a falar em qualquer coisa como uma hora e meia para “perder aqui”. Hesito ao ponto de me dirigir para o carro. Pelo canto do olho vejo algumas fotos em pequenos rectângulos e assomo-me de novo à loja para as ver. Sou imediatamente elucidado por gestos que são os famosos ímanes de frigorífico, uma indústria que entrará em declínio assim que os frigoríficos deixarem de ser metálicos…

Não estou interessado na compra dos artigos, apenas as imagens me fazem lembrar que talvez devesse mesmo aproveitar. Compro o respectivo bilhete de 2 Lev (cerca de 1 Euro) e inicio o caminho quando um grupo de três estrangeiros está já a descer passando a cancela. Já nem pergunto se vale a pena, o bilhete já está comprado e a decisão tomada.

Não passa muito tempo para começar a pensar nas opções tomadas. Tenho equipamento de trecking no carro, estou a subir uma encosta com sapatos de trabalho e a passo acelerado, podia ao menos ter mudado de calçado mas já era tarde demais. Cruzo-me com poucas pessoas e rapidamente estou no topo onde admiro um pouco o fenómeno natural na companhia de um casal que falava francês

.

Inicio a descida com o devido cuidado para não resvalar. O caminho nesta parte é bastante estreito e a barreira de um dos lados em vez de não deixar os visitantes cair decidiu cair por ela própria. Daqui avista-se toda a vila e áreas circundantes. Apesar da pouca altitude, tem elevação suficiente para mostrar os horizontes até à próxima montanha do mesmo lado.

Ultrapasso algumas pessoas com quem já me tinha cruzado na subida e chego ao carro com a camisa cheia de desenhos húmidos que não faziam parte do design do estilista. 45 minutos depois de ter iniciado a subida estou de volta à estrada. A senhora que me vendeu o bilhete deve ter ficado a pensar que desisti a meio e voltei para trás.

Ao chegar ao entroncamento com a estrada principal a polícia está agora do outro lado, mas mais uma vez não me manda parar. O trânsito é tão pouco que devem andar a tentar perceber qual o lado da estrada onde terão mais sorte.

Continuo a sentir familiaridade com o percurso apesar de o ter feito apenas uma vez neste sentido. Absorvido pelos pensamentos até “acordo” a pensar se já terei passado um ou outro sítio de que me lembro da última vez. Concentro-me apenas em lembrar-me de abastecer na última estação de serviço Lukoil da qual tenho o cartão da empresa. É o suficiente para ir e voltar sem ter de me preocupar, afinal o patrão vai-me patrocinar com algo mais…

Chego finalmente à estação pretendida a poucas centenas de metros da fronteira; existem aliás muitas gasolineiras por aqui, representando neste pequeno troço as várias marcas existentes na Bulgária. O mesmo não acontece no caminho para a Sérvia onde aquando da minha ida para a meia maratona de Belgrado fui surpreendido por apenas haver uma Lukoil na saída de Sófia, facto tardiamente percebido já perto da fronteira. Dou de beber ao veículo, abasteço-me de água e compro um pequeno pacote de frutos secos que estão a olhar para mim.

Na fronteira está tudo tranquilo. Na parte búlgara nem existe ninguém para verificar o que seja, mas passo devagar só para me assegurar que assim o é. No entanto estou a seguir alguns carros e reparo que não sou o único que apenas abranda antes de seguir caminho.

A fronteira com a Macedónia é aquela que me tem feito perder mais tempo e já ouvi histórias sobre a fronteira com a Turquia onde pode ser necessário levar mantimentos para sobreviver em caso de migração massiva nalgumas alturas do ano.

Da última vez, esta travessia para a Grécia não demorou muito tempo mas houve uma verificação da documentação dos seis ocupantes e respectivos documentos do carro. Foi ainda pedido um pagamento de 15 euros que achei estranho mas iria pagar e calar. Facto, no entanto, rapidamente rectificado, o carro tinha a “Vignete”, sistema utilizado na Bulgária para se poder usar as vias principais. O símbolo que existe na entrada das estradas onde tal dístico é necessário faz lembrar uma auto-estrada, mas a maioria ainda tem de comer muito feijão para chegar a este estatuto. Na verdade existem muito poucos troços dignos desse nome.

Dado o sistema utilizado não existem portagens físicas. Como inclui quase todos os acessos fora de localidades, existem coitados que quase para sair da garagem têm de pagar o tal selo enquanto outros que vivem, por exemplo, em Sófia, podem fazer um uso alargado da viatura sem nunca o comprar.

Chego junto à parte grega neste lado do mundo entre fronteiras que sempre me pergunto a quem pertence… Qualquer dia reclamo estas franjas territoriais para mim e passo a viver das comissões a cobrar pela passagem. Existe um vinho chamado “No Man’s Land”, dizem-me que o nome vem exactamente do facto de as vinhas ficarem nesta região entre a Bulgária e a Grécia. Mostro o passaporte, o espanto sempre igual de verem um português. Não deve ser muito comum um “tuga” num carro búlgaro a atravessar a fronteira. “Portugália” comenta um para o outro com um sorriso na cara e não há mais questões nem verificações de bagagem.

Entro num novo patamar de vias rodoviárias. Os gregos, tal como nós, devem ter investido muito em betão e agora pagam em sofrimento colectivo. A indicação do GPS faz-me sair num sítio pouco provável e para uma estrada de aspecto duvidoso. Já o fez da última vez que aqui passei e por isso não me espanta; correu bem na última viagem e sigo as suas indicações.

Algum tempo depois de retornar à via principal sou finalmente confrontado com um desvio em relação ao último percurso. Apanho a saída correspondente e rumo a uma nova direcção quando sou surpreendido por uma indicação de portagem. Tinha ideia de levantar euros na Grécia mas apenas no final da rota inicial. Lembro-me que tenho poucos euros na carteira depois do fim-de-semana anterior quando estive em Malta. Faço uma pequena verificação e vejo várias notas de 10 euros. Tem de chegar.

Aproximo-me da portagem ficando atrás de outro carro ao invés de usar uma das várias entradas livres para ter tempo de verificar o preçário. Apenas 2 euros, ainda verifico as moedas mas não soma o suficiente.

O portageiro deve ter reparado na matrícula búlgara e inicia logo a conversa em inglês, o que me poupa ficar em silêncio. Troco e recibo em grego descartado da mão, pé no pedal e avanço para os 130Km hora que é o limite marcado nesta auto-estrada. Vou começando a admirar a paisagem ao fundo que assumo já ser Halkidiki. Visto no mapa parece-se com uma mão de 3 dedos a entrar pelo mar. Quando se fala em termos cardinais a contagem começa de Oeste para Este. As duas primeiras são Kassandra e Sithonia, locais aprazíveis para férias segundo já me fizeram saber. A terceira é onde Monte Athos está. Só uma pequena área inicial é parte do mundo normal, sendo o resto parte do reduto ortodoxo. Num dos sinais que se vêem nas auto-estradas onde passei até hoje, é mostrado o mapa da Grécia, onde se destaca com uma cor diferente a região onde nos encontramos no momento. Monte Athos está sempre numa cor castanha como se não fizesse parte do território.

Apesar de estar sol começa a chover. Não me agrada a ideia, não vim preparado para a chuva tendo apenas enfiado um monte de “sacos do lixo” que me pareceram grandes o suficiente para alguma urgência. Separei ainda os vários conteúdos da mochila em sacos para os poder rapidamente identificar e os proteger de alguma água lançada pelo São Pedro ortodoxo.

Forma-se um espectacular arco-íris dos mais nítidos que já vi. Infelizmente as fotos nunca captam estes momentos na sua grandeza real. A chuva pára ou possivelmente eu é que me afasto do local eleito para o seu derrame e sigo a minha viagem após desvio da auto-estrada, sendo logo parado por um semáforo onde fiquei tempo psicológico demais. O sinal teimava em não abrir e o entroncamento onde estava plantado parecia um deserto de vida. Quase a ponto de verificar a possibilidade de infringir uma regra de trânsito, lá o sinal se digna a passar de tinto a verde podendo prosseguir viagem passando por um sinal que antecedia uma ponte. A minha interpretação foi de perigo de derrapagem por causa de sapos. Fiz uma nota mental para o fotografar na volta e fiquei a pensar no filme “Magnólia”, que inclui uma cena onde chovem batráquios.

Percorro aquilo que me parece ser o último desvio de estrada pela sensação de estar a entrar na península para onde me dirijo. Vejo um sinal de banco na entrada de uma pequena localidade e paro junto a uma pastelaria. Saio do carro a coxear, a perna direita está perra de tanto conduzir; não ter cruise control dificulta viagens grandes. De qualquer maneira, na maioria das estradas por onde deambulo em veículo motorizado, não serviria de muito pela impossibilidade de manter uma velocidade constante. Dinheiro no “bolso” e um café tomado com muitos agradecimentos do proprietário, deixo o local 2 Euros mais leve. Já reparei por diversas vezes que o café por estas bandas é muito caro. Acordamos duas vezes: ao beber e ao pagar.

Mais à frente reparo que a localidade não é assim tão pequena como inicialmente me parecia, apenas “ao comprido” como obriga a geografia local. Várias praias e instalações de recreio são visíveis ao lado de restaurantes, parques e outros edifícios, todos eles baixos.

A estrada vai-se estendendo sempre às curvas mostrando uma beleza natural de fazer inveja a muitos locais onde estive mas fazendo-me parecer, pela vegetação, a Arrábida.

Numa subida vejo um ouriço-cacheiro a atravessar a estrada. Traz-me memórias, mas não fazem parte desta história. Mais à frente é a vez de uma tartaruga, talvez me traga memórias um dia… Não vejo nenhuma galinha a atravessar a estrada pelo que não começo nenhuma questão filosófica relacionada com o tempo e sigo rumo.

Numa curva inclinada para a direita vem um maluco numa velocidade estonteante a resvalar para o meu lado, nem tenho tempo para pensar ou ficar assustado. Mas tudo bem, corrige a rota, o carro responde e é como se não se tivesse passado nada, felizmente.

Ouranopoli começa a querer aparecer. Ainda não vi nenhuma indicação concreta do local, mas já se nota o começo de uma área mais urbanizada por resorts e claramente o que é a vila em si. Estou a chegar, mas paro o carro para admirar as vistas. Estou junto a uma praia preparada com camas e chapéus de palha com tronco de madeira. A água tem uma cor de fazer inveja, mas deve estar fria demais para o meu gosto, também não venho munido de material para o efeito e nudismo aqui não me parece apropriado.

Entro na vila tentando vislumbrar, entre os vários sinais, o Hotel Macedónia que marquei pela net. Chego ao largo principal no extremo da vila, junto do mar e por detrás da Torre Bizantina.

Viro à esquerda, única possibilidade, e mais à frente vislumbro o sinal Macedónia num dos edifícios de uma rua à esquerda; está descoberta a guarida para esta noite. É um hotel de 2 estrelas mas tem tudo o que preciso, até mais do que vou ter nos próximos dias, uma transição suave para a realidade que vou experienciar.

Faço o check-in, entregam-me a chave e ainda recebo uma senha de acesso ao mundo. ABCDE12345 é a senha do WIFI, o dono diz para não me rir ao escrever a complicada password num papel.

Indica-me o caminho e sai da recepção que, pelas mesas dispostas na sua grande dimensão, parece servir também de sala de refeições quando a sala anexa se encontra cheia. As escadas são simples e não existem elevadores a unir os apenas dois andares de que dispõe. Procuro o número do quarto que fica do lado direito; vai ter vista para a rua de acesso à entrada.

A porta do quarto está aberta, trancada mas aberta, entro para verificar se está tudo ok e confirmo que sim. Deve ter ficado aberta por engano. Fecho a porta e tranco-a por dentro, preparo-me para um banho após esta longa viagem. A perna direita ainda me dói e inclusive o pé que nunca ficou o mesmo após uma lesão que sofri.

Um mini bar vazio, uma cadeira, uma cómoda e duas camas individuais são tudo o que tem de mobiliário, para além das pequenas mesinhas de cabeceira. As camas estão prontas e guarnecidas de toalhas como se duas pessoas fossem esperadas. Não me recordo de qualquer pergunta aquando da reserva, talvez o preço fosse por quarto podendo alojar mais alguém se fosse o caso.

Entregou-me a chave do quarto pelo que não será um quarto de ser partilhado. Na minha ida para a Maratona de Belgrado fiquei num “hostel” e fui responsável por essa parte do planeamento da viagem que efectuei com mais cinco búlgaros. Nunca tinha tido uma experiência destas e já com a indicação do site efectuei a reserva de um quarto com capacidade para seis. Éramos apenas cinco na altura. Para meu espanto ainda havia depois disto um lugar vago para o mesmo quarto, o “Toulouse”. A marcação era por cama por isso alguém ainda podia escolher ficar no mesmo quarto que nós. Tal não aconteceu porque reservámos a outra cama nos dias seguintes para um novo membro que se iria juntar a nós. No entanto, houve algo curioso… em tom de brincadeira, obrigámos o bem disposto proprietário a mudar o nome do quarto para “To Win” durante aquela noite. “To loose” não parecia bem para quem ia correr numa prova, apesar de o único objectivo ser o de acabar o percurso.

Do mesmo modo como vim ao mundo (mas com um pouco mais de pilosidade) vou para a casa de banho quando reparo que a porta está aberta. Verifico a situação e percebo tudo, a porta não gosta de estar fechada, tem de ser bem empurrada ou puxada conforme a posição do operador antes de ser trancada à chave.

Tenho sempre curiosidade nas condições do banho que nos são apresentadas nos vários locais. Ouço muitas pessoas mencionarem o conforto ou falta dele nas camas que lhes são apresentadas. Neste aspecto apenas me preocupa a almofada, que gosto baixa, caso contrário passo sem ela. Como cama qualquer coisa serve, durmo em todo o lado. O duche também vai ter de servir, como aliás tem sido o caso até hoje, mas reparo sempre nos pequenos pormenores… Pressão da água e temperatura da mesma e muitas vezes até a coloração diferente que apresenta, facto que me faz esperar alguns minutos quando tal acontece para ver ser consigo algo mais transparente. Nada a salientar, boa pressão e uma temperatura facilmente controlável. Até o resguardo se porta bem e não teima em se colar ao corpo. Já li inclusive uma explicação científica sobre este facto e usava a convexão da água quente como causa principal.

Após me sentir outro pelas maravilhas sempre refrescantes da água, procuro um local para o derradeiro repasto pago dos últimos dias e aproveito para me dirigir ao sítio de onde sairá o ferry na manhã seguinte. Perto deste local e, escondida da rua onde passei de início, uma fileira de restaurantes e lojas viradas para a baía. Escolho um, peço alguns itens da lista e uma garrafa pequena de vinho grego. O empregado, ao saber que sou português faz uma exclamação: primeiro português que sirvo em 14 anos que trabalho aqui! Realmente não deve ser muito comum, penso eu…

A paisagem do sítio onde me encontro é muito bonita. Apenas se estraga um pouco pela confusão gerada nas areias imediatamente em frente. Concentrando a visão no horizonte, o pôr-do-sol que se faz presente dá uma sensação idílica ao local. O próprio pátio coberto onde me encontro é algo estranho e contribui para a sensação de estar deslocado no tempo e no espaço. No centro tem uma fonte com patamares por onde vai escorrendo a água que sai da parte superior e adiciona o barulho de cascata à refeição.

Serve-me o café final que diz ser pela casa, peço a conta mas corrijo, antes da conta posso provar uma amostra de Uzo? Acede e diz ser também pela casa.

Está na hora do retiro para o descanso, ainda é cedo mas não tenho muito mais para fazer por aqui. Inicio o caminho de volta pelo outro lado da rua olhando para as lojas. Vejo uma coisa essencial que tenho de comprar. Um mapa! Na net não se encontra nada de jeito e a indicação dada é sempre para encomendar um mapa austríaco que supostamente é o único digno desse nome. Vejo um que referencia ter sido feito com GIS (Geographical Information System). Abro e verifico que tem indicações minimamente precisas dos trilhos, fontes, etc. Tem também todos os mosteiros e skitis existentes, assim como as rotas dos barcos de acesso… Está decidido! Os skitis são, no fundo, pequenas construções que não fazem parte da lista, dada a sua pequena dimensão. Parecem constituir uma opção para dormida, facto que desconhecia. No mapa existe uma lista com todos estes locais somando um total de 94, entre mosteiros e skitis, numa lista intitulada “cells”.

Percorro as pequenas ruas a caminho do quarto na esperança escondida de haver algo que me prenda a atenção. Nada toma essa função e em pouco tempo estou de novo à porta do hotel. O recepcionista, que tudo indica ser o dono, não está à vista mas a chave está em cima do balcão. Retiro a mesma e retiro-me a mim mesmo para o respectivo aposento.

Dedico-me a fazer uma última tarefa, dar um vista de olhos aos emails de trabalho. Afinal fiz gazeta e devo pelo menos manter as tarefas de hoje em ordem.

Capítulo 2.

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