Introdução
Alguns dados mais recentes do Banco Mundial apontam por um risco de recessão global da economia, o que isso significa na prática é que o atual modelo econômico e financeiro mostra não conseguir mais trazer respostas e soluções efetivas para além de crise, guerras, acumulação e desigualdade.
Na data em que escrevo o mercado financeiro encontra-se em crise com o anúncio da quebra de mais um banco estadunidense, dessa vez o chamado banco da Startups (SBV), e o Estado novamente socorre as instituições financeiras às custas da economia mundial.
Principalmente para comunidades periferizadas ou economias de países que foram colonizados, a conta fica cada dia mais cara e a tentativa de manutenção de uma lucratividade irreal com a manutenção de privilégios estruturais, acentuam a concentração de riqueza a desigualdade social.
Nesse contexto, as finanças descentralizadas surgem com uma outra proposta de compreendermos as relações sociais, econômicas, produtivas, os modelos financeiros, suas aplicações e riscos e principalmente o ganho de autonomia coletiva. Temas como o do acesso ao microcrédito, fortalecimento da economia circular, lucratividade e participação surgem de modo efetivo, como alternativa.
O presente artigo pede licença e abre uma série introdutora sobre o que são as finanças descentralizadas, conceitos básicos, experiências e alguns protocolos funcionais, para trazer o debate sobre novos modelos econômicos em uma ótica, especialmente, voltada para comunidades negras e periféricas, já que, são grupos tradicionalmente mais afetados pelo modelo econômico vigente.
O que são as finanças descentralizadas
As finanças descentralizadas são identificadas pela sigla DeFi, do inglês Decentralized Finance, e, numa linguagem prática, podem ser compreendidas como uma tecnologia que permite a criação de um ambiente financeiro e econômico de modo totalmente independente, sem a necessidade de participação de Governos ou de empresas financeiras como os Bancos.
As finanças descentralizadas são operadas dentro de sites, aplicativos e outras interfaces conectadas à uma blockchain, uma tecnologia que basicamente, funciona como um cartório digital, onde todas as negociações são registradas e abertas ao público, sendo que ninguem consegue alterar, falsificar ou modificar uma informação válida e devidamente registrada.
A blockchain resolve um dos maiores problemas da associação humana: a confiança. Como não podemos garantir que as pessoas agirão de forma ética e responsável, criamos o Estados, as leis, a burocracia para controlar o comportamento humano. Agora, graças ao poder da matemática e da tecnologia vemos surgir um ambiente totalmente novo para a experiência social.
Esse ambiente global de confiança mútua entre as pessoas pode permitir trocas, serviços, produção, comunitarismo, distribuição de recursos e promoção de uma abundância social e produtiva.
Com isso, não é mais necessário que agentes financeiros e/ou reguladores façam o controle sobre a emissão de dinheiro, controlem a validade de transações financeiras ou até mesmo interfiram, segundo interesses que podem ser corrompidos, na política econômica.
De modo simples, são uma alternativa de permitir que as próprias pessoas passem a ter o controle de seu próprio dinheiro, o valor de suas produções, em uma outra lógica de distribuição de ativos, recursos e benefícios, para além da forma como hoje pensamos a economia.
Mas, antes de entrarmos numa explicação sobre quais problemas DeFi pretende intervir, vale compreendermos algumas estruturas básicas do sistema financeiro atual.
Uma economia de dívida
A economia mundial esta baseada em dívida. Por trás da estrutura financeira internacional, governos e bancos privados emitem títulos de dívida (promessas de pagamento) para atrair investidores ou fazerem a emissão de dinheiro, criando um endividamento cada vez mais constante.
Além disso, as decisões financeiras e econômicas geram impactos reais e diretos sobre cada um de nós, levando-nos à conclusão de que o dinheiro é um instrumento político! Ao controlar o fluxo de dinheiro, o preço dos produtos, a remuneração do trabalho, o custo de vida e outras coisas, governos e empresas influenciam comportamentos, impactam no consumo e interferem até mesmo na garantia de direitos básicos essenciais como alimentação e moradia.
Em nosso dia a dia, a sensação é de que, quanto mais se trabalha, menor é nosso poder de compra. Lembra daquela conversa, de que: “antigamente eu ia no supermercado com R$50 conto comprava um tanto de coisa, agora não da pra nada”?! Pois é, essa sensação está essencialmente atrelada a esse debate.
Menos que uma crítica marxista, a dominação dos meios de produção, bens e capital econômico, fiquemos na crítica do Grupo As Meninas e o sucesso Xibom Bombom, "o rico cada vez fica mais rico e o pobre cada vez fica mais pobre”
Atualmente a dívida mundial é a maior dos ultimos 50 anos e o modelo econômico começa a se esgotar de forma nítida. Um de seus efeitos imediatos é a concentração de riqueza, e a formação de capital parasitário, somente baseado em lucro especulativo.
A crise econômica foi agravada pela pandemia mundial, onde os ricos ficaram ainda mais ricos, demonstrando como o capital se alimenta de crise para produzir lucro, uma forma de visualizar isso é o fato de que só no Brasil, cerca de 3 mil pessoas têm mais renda do que 180 milhões de brasileiros.
Finanças Centralizadas x Descentralizadas
O ponto central de diferença é que, ao invés de governos ou empresas, dentro das finanças descentralizadas,, sem qualquer participação de um ente central e o que faz a economia girar é a própria comunidade que possui agora um instrumento próprio para gerir seus interesses econômicos.
Instituições financeiras como os bancos centrais são trocados por protocolos de emissão de tokens (como as criptomoedas), os bancos e as corretoras são substituídas pelas corretoras descentralizadas, a liquidez do mercado é financiada pelas próprias pessoas, ao invés dos altos custos para envio de dinheiro e pagamentos os aplicativos descentralizados permitem operações em segundos com taxas muito baixas.
Para pessoas que nunca tiveram o protagonismo da estrutura atual, para àqueles a quem são negados até mesmo abrir uma conta no banco por causa do lugar onde moram, ou que não conseguem um empréstimo porque não tem o perfil do banco, abre-se uma porta inédita onde pouco importa quem você é e mais significa o que você faz e pretende construir.
Por determinado período, dentro de organizações do movimento negro, olhar para o dinheiro enquanto uma saída de proteção ou de qualidade de vida, pode ter parecido uma contradição, algo como se pessoas negras ganharem dinheiro fosse como uma espécie de venda da alma para o próprio algoz.
Hoje em dia expoentes, lideranças, movimentos negros organizados superaram o trauma e pautam a luta por educação financeira, acesso a crédito, financiamento de negócios, melhores salários, valorização de produtos e serviços, o tema se tornou uma realidade, uma pauta necessária.
Lideranças com Nina Silva do movimento Black Money, a maravilhosa Nath Finanças, Mano Brown, Emicida, o projeto No Front, são referencias de como esse debate importa. No especial “Grana Preta” do jornal Metrópoles vemos exemplos de como o empoderamento econômico cumpre um papel determinante quando se pensa em autonomia e construção de futuro, especialmente para mulheres negras.
Essa não é uma preocupação propriamente do mercado financeiro tradicional. A educação financeira ou o fortalecimento do afroempreendedorismo não estão no foco, haja vista a principal pesquisa realizada pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA), “Raio X do investidor brasileiro” na qual o dado RAÇA sequer é cogitado.
Conclusão
A descentralização financeira está para além de estratégias sobre como investir de forma lucrativa e se aproveitar de protocolos tecnológicos para criação de lucro, trata-se de uma oportunidade de construirmos relações econômicas saudáveis, equilibradas e mais justas.
O projeto Blcktopia é uma alternativa para a criação de alternativas econômicas dentro de comunidades periféricas, o Blockchain na Escola leva o debtate para dentro do ensino público, para, através do uso da tecnologia e das ferramentas descentralizadas, em uma tentativa de se pensar um ecossistema econômico entre quebradas e seus negócios.
Obviamente, que, como qualquer tecnologia, o uso e aplicação das tecnologias descentralizadas podem ser utilizadas para os mais diversos interesses, no entanto, quando se pensa o bem comum essas ferramentas abrem a possibilidade de criação de um ecossistema de certa forma inédito em termos de escala e alcance.
Compreender suas ferramentas, tecnologias e aplicações pode ser um ato de vanguarda, um movimento estratégico que, principalmente quando se observa populações mais vulnerabilizadas, mas, que, verdadeiramente produzem, criam, inovam e experimentam abre uma chance de oportunidade bastante relevante.
Esse é o primeiro texto de uma série, nos próximos artigos iremos explorar mais a fundo como funcionam os protocolos e aplicativos e quais as principais formas de utilização e aplicação prática dessa tecnologia. Tamo junto.
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*Verber Alves é advogado em conflitos humanitários, pesquisador em blockchain, membro dos projetos educacionais Blockchain na Escola e Blcktopia.