Athos - Capítulo #3/5

Dia 2 – 20 000 passos (02.06.12)

A luz exterior a entrar pela janela desperta-me antes do despertador “acordar”. Não é luz directa, mas suficiente para iluminar o quarto já de uma forma nítida.
Tento espreguiçar-me sem tocar nas paredes e verifico as horas. Acordei meia-hora antes do que defini como limite para o descanso.

E agora? Estou de pijama improvisado com umas calças de fato de treino e t-shirt. Para todos os efeitos, um “pijama”.

Será que me devo apresentar nestes trajes a quem possa passar enquanto vou tomar banho? Não arrisco.
Visto-me para o dia, levando uma muda de roupa interior dentro da pequena toalha. Esta teima em se mostrar como se sofresse de claustrofobia.

Chuveiro ocupado e, pela população circundante, parece-me que apenas espera renovação de ocupante.
Tenho de levar um monge à Disneylândia. Talvez adoptem o sistema de revelar quanto tempo se estima até chegar a nossa vez, nas sempre infindáveis filas existentes.
Por ora, limito-me a seguir o caminho até ao WC, não deixando transparecer que o plano inicial passava por um banho quente.

Com uso de um lavatório, faço a higiene pessoal apenas do pescoço para cima.
Vai ser o dia da escalada à montanha. Não vejo que exista muita gente para reclamar de um banho não tomado. Este também teria o efeito anulado nos primeiros 100 metros de subida.

No quarto deixo as coisas preparadas para a saída. Com pouco mais de duas ou três manobras, a mochila fica arrumada. Sigo para tentar descortinar qual será o “mata-bicho”.

Não demoro a perceber que é na “sala dos livros”, por estranho que pareça.
Em cima da mesa encontram-se agora pequenos pratos empilhados, uma travessa com fatias de pão e um balde com…. azeitonas! Muno-me do meu quinhão.
Ao sair, reparo de onde vêm os copos de plástico brancos que já tinha visto nas mãos ou presos entre os dentes daqueles com quem me cruzei pelo caminho.
No canto da sala, junto da porta, existe um dispensador de chá com os copos por cima.

Interrompido o jejum, mas apenas aliviada a fome, fico-me pela varanda a fim de ir monitorizando as presenças no porto lá em baixo.
O horário do ferry não foi muito bem definido pelo monge que me mostrou as instalações. Pretendo seguir eventuais peregrinos pioneiros na decisão de descer.

Não demoro muito em ver um. Estava de novo a falar com o holandês de ontem, que também não sabia nada sobre os horários.
Despeço-me, desejando boa sorte para o retorno dele, que se fará hoje. Vou ao quarto “zippar” o que resta da mochila, tomando o fecho final da porta como o “check-out”.

Não tardo a fazer o caminho descendente em direcção ao porto. Este é composto, em grande parte, por calçada irregular de paralelepípedos de pedra, ao estilo de algumas estradas antigas, mas com menos cuidado na forma de colocação.

Lá está o elemento humano visível de cima. Já o tinha visto antes, mas nunca trocámos palavras.
Estou a pouca distância de poder retirar a mochila e olho para trás. O mosteiro está com umas cores dignas de uma boa foto. Boas fotos não é o que costumo fazer, mas decido tentar uma para a posteridade. Uma em que não precise de “Photoshop” para me enquadrar com o mosteiro.
A tentativa foi bem sucedida, mas não em captar o efeito do sol no topo do monte, pois fiquei à frente. Nova tentativa para captar apenas a paisagem. Como sempre, o registo é fraco quando comparado com a realidade. Falo apenas na imagem, nem me passa pela cabeça referir o que é transmitido a todos os outros sentidos.

Faço um cumprimento mudo com a cabeça e recebo um “hi”. Fala inglês e parece mostrar um sorriso nos olhos por alguém se juntar a ele.
O inglês não é muito bom, desculpa-se. Melhor do que o meu grego, digo eu em termos de brincadeira, e pergunto para onde vai.
Vai para Dafni… Abro dentro da minha mente uma ampliação do mapa que tenho desta região.
Dafni é para a direita, de onde penso ser o ponto de partida do ferry a cada manhã.
Este será o primeiro barco do dia. Na sua continuação, a partir daqui e para a minha esquerda, faz a segunda paragem em Agni Anni, onde pretendo sair.
Só depois retornará a Dafni.

Confronto-o com este facto que comprova, encolhendo os ombros como que a dizer que não sabe por que veio para ali tão cedo.

Apresenta-se como Christos e, após algumas tentativas, consegue chegar perto de conseguir dizer o meu nome.

Não percebo estes estrangeiros. Alguns falam línguas muito estranhas e depois não conseguem falar uma língua tão fácil como o português. Até a minha filha de três anos o faz apenas com dificuldade nalgumas palavras! O meu nome não é uma delas.

Pergunta se bebo. Quase como início de conversa, assumo que não esteja interessado na informação per se e que vá tirar algum coelho da cartola. Após anuimento da minha parte, confirma a minha suspeita, retirando uma garrafa da mochila. Pelo pequeno tamanho e cor assumo ser Uzo. Afinal não é, falta-lhe o sabor doce. É do mesmo tipo da que bebi ontem e fico a saber chamar-se “Chiporo”. É feito na península e, passando por cima do estranho nome para o sabor e descrição na garrafa, fico a perceber ser uma aguardente vinícola.momo

A conversa desenrola-se com perguntas e respostas corriqueiras. O forte álcool da bebida começa a ter pressa de subir pela solidão encontrada no estômago.
Não falta muito para estar meio tocado e a garrafa a dar por terminada a sua tarefa de conter o líquido.

O Christos parece sofrer do mesmo mal, avaliando pelo diálogo que, mantendo a qualidade, aumenta em quantidade… e também em estranheza.
Lá percebo que diz não conseguir receber chamadas no telemóvel. Mas depois diz que vai comprar uma recarga.
Já não sei se é fazer ou receber chamadas, apenas que tem uma necessidade de contacto com o mundo exterior.
Avança para o facto de ter um problema de natureza incerta no apartamento e precisar de falar com a mãe… Percebo onde quer chegar e disponibilizo o meu telemóvel para o aliviar desta preocupação.

Talvez como “pagamento”, ou apenas sentindo que tem alguém de confiança à sua frente, começa a partilhar factos da sua vida.
Ainda ontem lhe entrou no corpo o Espírito da Virgem Maria e já aconteceu várias vezes noutras ocasiões.

Numa situação normal, dois homens, já bastante alcoolizados, estariam a disputar quem teria entrado na Maria e não o contrário.
Contenho-me para não causar impressão de ser herege, tentando inclusive pensar no nome genérico de “Maria” sem referências sagradas.
Mas não tardou a surpreender-me com um comentário onde o álcool já falava.

  • Acho que me escolhe a mim por não haver virgens disponíveis. Diz ele.

Não aprofundo a questão, o fraco inglês dele iria dificultar a minha curiosidade de saber como pode ele ter certeza disso - refiro-me à descida da Virgem Maria nele, claro!

Ri-se muito. Aliás, toda a sua face se ri genuinamente do que diz e do que eu digo, quando lhe agrada, o que se resume a sempre. Mas de um modo muito silencioso, contrastando com a gritante expressão presente na sua cara.
Não fosse haver, de facto, algum som emanado de si, seria comparável a um mimo que exagera nas expressões faciais, talvez a compensar a falta de palavras.
Parece haver menos capacidade pulmonar do que de musculatura facial e brilho nos olhos. Não me espanta pelo facto de ainda não ter parado de fumar desde que cheguei.

Pergunta se vou ficar no Mosteiro de Agni Anni (ou Agiana como diz).
Digo que não e falo dos planos de subir ao monte. Aperta-me o ombro batendo depois de punho fechado no peito, acto acompanhado pela palavra “strong”.
Afirma não ser capaz de tal proeza, está velho (tem quarenta e seis anos segundo diz) e não tem pulmões de jeito...

Informa-me que a melhor maneira de limpar o corpo é o jejum, pois já fez um de quarenta e tal dias.

  • Só com água e açúcar? - pergunto eu sem grande conhecimento de causa. Costumo fazer jejum muitas vezes, tipo entre o almoço e o jantar.

  • Com água e vinho, deitado numa cama sem falar com ninguém e apenas com um espelho - recebo em resposta.

Continua no mesmo registo mas a falar de um monge local que conseguiu a proeza de oitenta e tal dias. Água e vinho foram também a sua “dieta”.

  • Pouco vinho. Acrescenta.

Durante alguns minutos, luta para me tentar transmitir algo que vai enrolando entre um quase monólogo. Quase a desistir, aponta para uma veia e refere “vinho”.
Faço uso dos meus poucos conhecimentos da eucaristia. Na minha mente forma-se a imagem de uma das pinturas de Leonardo Da Vinci, um completo tratado astrológico, segundo alguns. “Isto é o meu corpo”… vem-me à memória:

  • Pão?

Com mais um riso confirma que acertei. No entanto, não prossegue com o raciocínio quebrado. Teria alguma coisa a ver com o vinho que tomou? “O sangue derramado…”
Mais uma vez não aprofundo o assunto. Não sei onde levaria mas, olhando para o relógio, já passa das 9:00 e outra questão ocupa a minha atenção imediata. Pergunto:

  • Não deveria o ferry já ter chegado?

Enquanto também mostra espanto pela ausência do ferry, avista-se outra embarcação, o “speed boat”.
Pondero o uso deste. É um pouco mais caro, mas é a única opção que tenho de momento.

Com o incentivo do Christos, aproximo-me do pontão e embarco.
A ideia pareceu-me logo má após entrar pois, ao contrário do ferry, este não tinha bar.

Tinha programado abastecer-me de sanduíches para o dia, o que ficou sem efeito.
Na bagagem só tinha barras de cereais e não havia mais refeições disponíveis para este dia.
Seria de todo impossível encontrar restaurantes na berma da estrada e não passaria a noite em nenhum mosteiro.

O speed boat faz jus ao seu nome. Não tarda a despejar-me na sua segunda paragem, juntamente com mais uma mão cheia de pessoas.
No cais, ao nível do mar, umas casas semi-abandonadas tomam a tarefa de delimitar o pontão de betão nos sítios onde a água não cumpre essa função.

A paisagem que flutua sobre a fraca urbanização é de cortar a respiração. Primeiro, sou confrontado com a beleza natural favorecida pela luminosidade do momento; depois, pelo antecipar da subida a ser empreendida, fico antecipadamente sem fôlego.

Não me deixo intimidar. Concentro-me no momento, em vez de sofrer por antecipação. O prazer está no caminho e não no chegar. Neste apenas a satisfação e o desejo imediato de um novo desafio. Somos uma “raça” que nunca está satisfeita, razão de tanta infelicidade... quer por não apreciar as constantes conquistas, quer por buscar o supérfluo à custa do próximo.

Um monge, a quem se dirigem os restantes para trocar informações, uns burros já preparados, julgo eu, para carregamento de mercadoria e um calor crescente compõem o melancólico cenário.

Não se avista daqui o mosteiro, que sei pelo mapa ficar entre os 400 e 500 metros de altitude. Apenas algumas casas que parecem fazer parte de uma malha de pequenas casas, salpicam a encosta.

Não peço informações a ninguém. Já tenho as opções reduzidas a umas escadarias no lado esquerdo. A única forma de não ter de sair daqui a nado, após o barco ter desaparecido de novo na sua infindável viagem até lado nenhum.

Aprecio mais uma vez a paisagem, maioritariamente composta por um verde que emerge quase a pico do azul da água, enquanto volto a colocar a mochila às costas.

Acabo de iniciar uma aplicação para gravar o percurso que vou fazer. Recordo vagamente as informações que dá: distância, percurso no mapa, estimativa de calorias e número de passos. Nunca percebi como calcula os passos, mas deve ser através da relação entre uma passada média e a distância percorrida.
Já tinha dado alguns passos antes de avistar escadas sem fim, a perderem-se numa curva acentuada para a direita. Penso ao pisar o primeiro degrau: “O primeiro passo é sempre o mais decisivo, o mais difícil!”
No fundo, é o que acontece quanto me levanto cedo para correr. Depois do primeiro passo dado não há volta a dar, antes disso posso sempre desistir.

Vem-me à ideia que este foi exactamente o caminho que o russo me disse para evitar, pela dificuldade que parece reservar aos aventureiros.
Já os austríacos só conheciam esta via e, ao ouvir o monge aconselhar vir por aqui, por ser onde “começa” o caminho para o topo do monte, tomei a minha decisão.

Havia também o orgulho de poder dizer que fiz 2033 metros desde o nível zero. Ninguém discute nestas situações o metro ou metro e meio, mas na verdade existe uma diferença na cota efectiva de onde estava e o nível do mar.

Iria agora testar os meus níveis de forma física. Tinha perdido bastante forma nos últimos dois anos… tinha perdido parte da forma redonda.
Já não tinha conta do número de sessões de corrida e bicicleta, recorrendo para isso à aplicação que uso para saber os milhares de Km percorridos ao longo dos últimos tempos.

No fundo, não me assustava o esforço puramente físico, mas tinha dúvidas quanto à especificidade da actividade. Tinha apenas feito uma subida ao topo de um monte: o Cherni Vrah, o Pico Negro.
Tinha chegado a Sófia, talvez um mês antes, quando o colega retido na malha profissional que o impediu de vir, me desafiou a subir com ele.

Foi no Inverno, por isso a maior preocupação era o frio e a neve já existente no percurso que levava aos seus 2290 metros de cota máxima.
Sófia já nos presenteia com 550 metros de altitude e é comum haver ainda “batota” por parte de quem o tenta conquistar por se transportar de carro até ao começo do trilho subtraindo mais uns 100 metros verticais ao desafio.

Recordo-me de como me falou da dureza do percurso a ser feito, das dores musculares a serem sentidas nos dias seguintes.
Vindo de alguém com bastante experiência, tomei as palavras por verdadeiras.
No entanto, não achei a subida nada difícil - em muito feita por pequenos avanços em altitude nas colinas pouco inclinadas - nem muito menos senti dores musculares algumas nos dias seguintes.

Observo agora com mais atenção o caminho diante de mim, que já se encontra a ser utilizado na direcção descendente por um comboio de burros encabeçado por um monge.
As condições agora são diferentes. Está muito calor, tenho uma mochila de 10kg às costas e o mapa mostra um declive muito mais acentuado.

Enquanto vou ganhando terreno inclinado, pela simples acção de ir colocando um pé em frente ao outro, começo a fazer um paralelo com o que se sente na corrida.

O choque do esforço inicial enquanto se tenta encontrar o ritmo “correcto”, a fase em que, já quente, existe tendência de ir além do ritmo aconselhável e por fim, se tudo “correr” bem, um “ritmo cruzeiro” que nos permite chegar ao quilómetro final.
Neste caso existe uma vantagem: as paragens não são mal vistas. Aliás, são mesmo parte integrante do “passeio”. Muitas vezes servem apenas o propósito de contemplar as maravilhas que uma perspectiva diferente do mundo nos revela.

Escadas, curvas, ladeiras e mais escadas elevam-me cada vez mais alto, deixando para trás pequenas casas sem sinais de vida e outras onde, não vendo vivalma, se denota manutenção recente.

Como em qualquer situação da vida, é chegado um pedido de decisão, uma escolha entre caminhos algumas vezes aparentemente opostos, como é o caso.
A beleza do entroncamento revestido de arvoredos no topo de uma parede, agora degradada, mas a esconder uma construção em tempos imponente, não tira a necessidade de avaliar por onde seguir.
Antes de continuar a análise requerida, perco uns minutos a admirar mais uma curiosa construção na parte do muro ainda bem conservada. Uma pequena “casa”, muito limpa e contendo uma lamparina junto com os ícones religiosos.

A visibilidade para além do horizonte imediato, está agora toldada pela proximidade dos “obstáculos” em linha de vista. Porém, mais abaixo, tinha ficado convencido que o sinuoso caminho poderia levar apenas a um qualquer local no topo, o que parecia ser o mosteiro que dá nome ao porto.

Poderia ser o caso do se juntarem mais acima, sendo o risco de engano grande.
O preço a pagar seria física e psicologicamente proporcional ao caminho percorrido até confirmação de um possível equívoco.

Oiço vozes vindas do caminho mais apelativo, aquele que me piscou o olho à chegada. Talvez por ter a atenção liberta, pela falta de sinalética onde a concentrar, exista um sexto sentido a funcionar.

Nem pergunto e sigo o meu caminho por esse lado, o que surge pela minha direita.
Apresenta-se muito sinuoso e a perder de vista, mas quase um luxo comparado com o que acabei de trilhar, pois tem degraus!

Pergunto-me porque é que não me dignei a confirmar a direcção com quem passava. Tento uma resposta em mim mesmo, mas não consigo. Apenas porque pareciam monges e tenho a impressão que não falariam inglês. Um simples apontar de dedo interrogativo, adjuvado ao nome do mosteiro teria chegado.

Como que para travar a questão que me atormenta, entra-me no campo de visão um rapaz que arruma coisas num pequeno pátio junto da escada. Aparenta ter uma idade pouco acima dos vinte anos.

“Né” - vem como resposta à minha questão, meio verbal meio gestual e acompanhada com uma advertência para as pernas. Bate nas suas, mas deve com certeza querer referir-se às minhas. “Haja pernas!”, traduzo eu mentalmente.

Não sabe ele que o mosteiro significa apenas um azimute temporário e não um destino final, aliás muito longe disso. Rio-me e continuo a subir depois de agradecer.
Não era monge e aqui não nasce ninguém. Deve pertencer aos trabalhadores que fazem a escolha de para aqui se retirarem, a fim de participarem nesta comunidade, de alguma forma. Não tem as mesmas obrigações externas de deixar de cortar barba e cabelo, nem de vestir as típicas roupas pretas. No restante, não faço ideia que votos terá feito.

Sigo em frente a pensar no “né” que em búlgaro significa “não” e em grego significa “sim”.
São pequenas coisas que podem ter um efeito muito grande em situações como esta.

Cheguei à Bulgária a saber muito pouco da língua e da escrita, que utiliza o alfabeto cirílico. “Né” e “dá” (“não” e “sim”) faziam parte dos vocábulos essenciais que eram referenciados nos vários artigos que pesquisei.
A utilidade extrema deriva do facto de, na Bulgária, o “sim” gestual ser para nós uma negação quando feito com a cabeça.
Para dificultar ainda mais e verifiquei por mim, algumas pessoas, sabendo estar perante um estrangeiro, refreiam a custo o movimento lateral da cabeça sendo que muitas vezes ainda tentam imitar o nosso abanar vertical.

Saber o significado de “dá” e “né” é, por isso, uma ferramenta de grande utilidade.
Tenho dificuldade em descrever o movimento. Não é exactamente o “sim” convencional. A primeira reacção seria uma comparação directa ao tique indiano. Em algumas pessoas isso até seria verdade. No entanto, na maioria diria que se assemelha ao nosso “mais ou menos” quando a cabeça acompanha a dúvida do pensamento.

Mesmo avisado, não deixou de ser estranho receber um “não” quando num restaurante se pede algo, ainda mais quando é a conta.
Hoje em dia já não me é estranho. Os meus colegas de trabalho já nem fazem esforço para evitar a linguagem gestual e eu até já a uso de vez em quando, como brincadeira, mas sempre de modo consciente.
Espero que nunca passe ao modo inconsciente, pois seria complicado. Lembro-me da minha estadia pela Austrália onde conduzem pela esquerda, “not on the right side”.
Durante muito tempo dava valentes murros na porta em busca do travão de mão e ligava os pára-brisas em vez dos piscas.
De volta a casa aconteceu o mesmo durante algum tempo… somos muito adaptáveis.

Se o meu conhecimento tivesse ficado pela versão búlgara, a decisão de continuar em frente teria sido revertida. Felizmente já estava avisado da diferença entre o búlgaro e o grego e já era a terceira vez que estava em território helénico.

Dividido entre os pensamentos e a paisagem sempre cambiante, cheguei ao nível do mosteiro.
Tinha subido cerca de 400 metros por caminhos de inclinação extrema, mas sempre em escada ou por pequenas ladeiras bem arranjadas, o que conferia com a informação dos austríacos e a advertência do russo.

O mosteiro era mais pequeno do que os que já tinha visto, ou pelo menos o corpo principal assim o fazia parecer.
Havia muitas construções “acessórias” em volta e desniveladas pelo terreno acidentado. Parecia mais um agregado do que um corpo único. Satélites ao motivo único da península: a vida monástica.

Continuo a subida já no encalço do próximo objectivo. A visão elevada permitia-me ver, no pátio, o movimento de monges com bandejas e outros objectos. Pareciam estar a preparar a recepção aos peregrinos dos quais me separei lá em baixo.
Possivelmente seriam transportados de burro até aqui acima; uma experiência que teria sido interessante.

Um breve pensamento atravessa-me a mente como uma mera constatação. Pouco menos de uma hora antes estava bastante tocado pela bebida partilhada em semi-jejum. Agora, nem um traço desse estado de espírito, era como se nunca tivesse bebido nada.

A atenção é desviada para uma cena digna de um quadro: um burro branco todo equipado junto da torre dos sinos. Paragem obrigatória para umas fotos e para a constatação de um “fim de linha”. O caminho continuava, mas havia claramente uma diferença no tipo de piso. Estava no fim do caminho que era mantido e arranjado para acesso pedonal. A partir daqui apenas trilhos num mato para mim desconhecido.

A paisagem era de uma beleza extraordinária. Mantinha o paralelo com a Arrábida, mas tinha dificuldade em aceitar esta definição por completo. Havia alguma coisa sob a minha visão que inquinava esta definição e não conseguia saber porquê.
Demorei algum tempo a escrutinar a paisagem em procura do motivo.

A vegetação era muito parecida, quando vista desta perspectiva. A flora poderia ser muito diferente, mas o efeito visual era similar. As ravinas eram aqui mais acentuadas do que em grande parte da Arrábida que visionamos dos miradouros. Estava consciente disso, não poderia ser a razão.

Concentrei-me nos edifícios e descobri a diferença. Não eram os edifícios propriamente ditos; essa parte já estava também filtrada na minha análise.
O terreno era usado para cultivo e, tal como na região do Douro, estava em grande parte distribuído em patamares que permitiam a sua utilização.
Esta era a grande diferença que não percebi de imediato e que se concentrava junto das “ilhas” urbanizadas.
Observei de novo o horizonte mais longínquo, onde apenas a natureza era visível e as águas de um azul cristalino convidavam a um mergulho. No fundo, eu já estava encharcado, mas de suor.

A continuação do caminho já se apresentava como um trilho, visível no mapa como uma linha tracejada. Não faltava muito para chegar ao que parecia ser um patamar contínuo aos 700 metros de altitude.
Por entre uma paisagem menos arborizada, de mais penedos e gravilha, este “pouco” teimava em não acabar, mas o avanço era visível. A cada olhar na direcção do ponto de partida, agora invisível e substituído apenas pela linha de água, este mostrava-se mais distante a cada passada.

No fundo, a dificuldade apresentada pelo declive tinha a recompensa de me elevar mais rapidamente ao píncaro que perseguia. O esforço, no entanto, tem sempre o reverso da medalha. Uma simples pedra toma, aos meus olhos, a forma de banco.
Estou num pequeno patamar onde a continuação se apresenta ainda mais inclinada.
Pelas inscrições numa pedra de face lisa, este já foi local de descanso para muitos antes de mim.

Sinto-me recuperado, mas por pouco tempo. Assim que inicio as passadas responsáveis por vencer o terreno inclinado que se apresenta debaixo dos pés, volta a mesma sensação de esforço, como se não tivesse parado durante todo o trajecto.
O tipo de piso também não ajuda a manter uma passada constante e ritmada. A irregularidade e o número elevado de pedras soltas, obrigam a um pisar cuidado e cauteloso. Um desequilíbrio ajudado pelo peso da mochila não seria “pêra doce”.

O mapa tem algumas indicações que se revelam interessantes. Algumas apenas como referências, tais como cursos de água e edifícios isolados.
Foi um pequeno abrigo que me fez olhar com atenção para o mapa, quer para verificar o caminho, quer para tentar localizar onde estava e batia certo.
No mapa, o abrigo apresentava-se como um pequeno quadrado preto reflectindo a real posição em relação ao trilho e à curva que se avistava.
Na realidade, foi dos poucos edifícios marcados como secundários que à vista normal era mesmo um quadrado.
Uma construção em pedra sobreposta com remendos e arranjos em betão. Sem porta nem janelas, com bancos corridos de ambos os lados e o que parecia ser um poço desactivado.

Patente noutros lugares inusitados, tais como simples rochas ou árvores, também aqui se podia ver um quadro com um ícone de um santo e uma alcova com pequenas gravuras e mensagens que assumi serem deixadas por quem passa.

Uma boa ocasião para um descanso simbólico. Entro, descarrego a mala e sento-me.
Não tem condições para pernoitar, para além de proporcionar um abrigo da chuva e do vento. Os bancos têm um formato que apenas permite estar sentado. Dormir teria de ser feito no chão duro com recurso a material de campism

o.

Apesar dos poucos metros quadrados de área, ainda cortados pelo poço quase central, daria para apenas duas pessoas e em condições complicadas de encaixe.
É patente a falta de odores menos próprios que se esperam encontrar neste tipo de local (praticamente um local abandonado) e que, por muitas vezes, já presenciei noutras ocasiões.

Já deixado o abrigo para trás, segui trilho acima, onde se apresentava agora a primeira bifurcação real ao caminho.
Contrariamente ao que se passou antes, agora estava claro que ambos os caminhos levariam a sítios muito distintos.
Talvez por isso se visse, pela primeira vez, sinais feitos em madeira que davam vida a indicações artesanais. Simples setas com os respectivos nomes.
No mapa não se via assinalada esta bifurcação. Na direcção mais óbvia, na continuidade do caminho, indicações do que parecia ser “Aton” – apenas em grego - e “Lavra” - em grego e latim.

Para o outro lado, um nome não completamente decifrável e sem correspondência numa busca feita ao mapa.
De qualquer modo era fácil tomar uma decisão, a direcção pretendida estava bem firmada nas descrições que consegui decifrar. Adicionalmente, existiam outras pequenas informações acessórias. Entre elas “4 h”, podia ler-se, mas sem indicação clara se era referente a “Aton” ou “Lavra”.

Hesito de novo, pois o trilho de início da subida ficava em “Stavros”, literalmente “Cruz”. Cruz também visível na árvore onde se afixam as tabuletas informativas e numa “cruz” simbólica formada pelos trilhos que aqui se juntam. Volto a rever os sinais.
“Aton” e “Lavra”, leio de novo, em linhas separadas, na indicação superior.
Tinha assumido serem localizações diferentes, mas poderia referir-se a “Lavra em “Aton”.
Faço um esforço para tentar uma correspondência fonética com o outro sinal, “Agi Ema”. A minha filha em versão de santa e sem nenhuma coincidência com a fonética por mim improvisada, nem com os nomes pelo qual o pico se faz representar no papel.
O facto de ter também 150 metros como distância seria, possivelmente, a razão do mapa nada referir, era apenas um pequeno desvio.

Hesitação afastada e reparo que o mapa está molhado. Já tem, inclusive, um pedaço rasgado devido à fricção do “mete e tira”.
Tenho andado com ele no bolso e tem absorvido de modo generoso o suor que já se faz sentir por todo o corpo e roupa.
Observo o mapa com alguma atenção, para dar algum tempo à minha memória visual. Guardo o mapa na mochila, pois tenho de proteger este tesouro de um trágico destino.

Animado pelo facto de constatar que, antes da derradeira subida, o trilho se mantém a uma altitude mais ou menos constante, avanço agora com alguma atenção à natureza.
Estou nos 700 metros de altitude, a quantidade de pássaros a chilrear é enorme. Um autêntico paraíso para quem goste de fazer a identificação através do seu canto.
Dos humanos, apenas as marcas da sua passagem e alguns ícones religiosos afixados de quando em vez.
Dos lados uns ruídos, quase constantes, emanam da vegetação. Consigo finalmente identificá-los como provenientes da fuga de lagartos de tamanho considerável.

A sensação de serenidade é tão grande que, aliado ao caminho ser quase horizontal, faz o percurso ser muito fácil.

Sigo maioritariamente abrigado do sol pela copa das árvores. O trilho segue o seu rumo, por vezes mais indefinido, mas sempre visível.

As variadas fontes pelo caminho estão arranjadas e servem de local de abastecimento ao líquido que vou ingerindo para de seguida o suar.

Muitas vezes, bancos de jardim colocados em áreas mais amplas do caminho, convidam a sentar e descansar as pernas e os ombros.
Poucas possibilidades de desvio no percurso e todas no claro sentido descendente.
Não fosse ser confrontado com quatro burros no meio do caminho e teria seguido sem notas de destaque.

Os animais ficam impávidos e serenos com a minha aproximação. Não me agrada, porém, as suas patas traseiras, nem o facto de estarem numa zona do trilho que é apertada para que possa passar ao largo. Sou obrigado a subir um pouco o monte para evitar a proximidade que permita um eventual coice.
Não estou habituado a estes animais no dia a dia, mas das poucas vezes que estive perto de equídeos sempre fui aconselhado a não ficar nas “traseiras”.
A tarefa não se revela fácil por ser uma mata serrada, mas lá me apresento do outro lado sem arranhões e apenas com uns ameaços de resvalo.

Não faltou muito para ser chamado de novo à realidade: havia uma bifurcação. Pensava então na possibilidade destes trilhos serem adaptados para BTT, com alguma limpeza, e nas maravilhas que proporcionariam aos praticantes.
Muita curva, uma beleza natural extraordinária e ainda um risco calculado de queda para pequenos abismos, mas nunca algo que apresentasse “morte certa”.

Não me dignei a grandes análises, seguindo simplesmente pela esquerda.
Na verdade, era quase em frente e a outra opção mergulhava consideravelmente no terreno, coisa que não estava no meu plano mental. O próximo passo seria sempre para cima.
Não faltou muito para me perder. O trilho parecia ter acabado, mas insisti por mais um bocado. O mesmo já tinha acontecido antes para depois o trilho ganhar forma de novo.
Acabei num pequeno planalto claramente fora de qualquer caminho normalmente percorrido.
Tinha tomado a opção errada e era altura de voltar para trás e, eventualmente, tomar o caminho preterido.

Sentei-me, tirei o mapa e verifiquei as métricas do caminho percorrido no telemóvel, que diligentemente continuava a cumprir esta função que lhe havia sido empossada.
Oito Km percorridos, algo estava mal! Não tinha distâncias exactas, mas estimei de forma já exagerada quatro Km para o local da subida: Stravos.
Teria de avaliar com cuidado onde estava e o que fazer de seguida.
Uma análise cuidada do mapa, com recurso às fontes e aos cursos de água que tinha na memória, começou a desenhar um avanço muito para além do pretendido.
Não tinha possibilidade de receber dados no telemóvel, pelo que não havia mapa disponível, apenas a linha do percurso em azul. Esta ajudava no entanto a juntar certezas aos outros factores analisados.

A necessidade, nunca até agora sentida, fez-me tentar perceber se existiam coordenadas actuais disponibilizadas pelo software. Afinal usava um GPS para exercer esta função.
Confirmei o que já sabia, mas não queria acreditar. Confrontadas as coordenadas do telemóvel com uma aproximação do que o mapa fornecia, estava mais perto do objectivo do dia seguinte do que do atual.

Reencontrei o trilho inicial com alguma dificuldade e quase ao ponto de começar a sentir uma pontinha de pânico. A rede de telemóvel por ali era muito inconstante e a amostra de ajuda humana era nula até ao momento. Uma eventual queda numa das ravinas seria algo que apresentaria um problema de difícil resolução.

A decisão de voltar para trás e não seguir para Lavra foi quase impulsiva. No dia anterior não tinha concretizado o percurso a pé previsto e decidi que hoje não ia desistir deste, no qual já tinha investido tanto pensamento.
Podia atribuir a culpa a muitos factores. O mapa guardado na mala era um deles e deixou de cumprir a sua função, por isso ia agora na minha mão em constante escrutínio.

O facto de ir distraído com o que via era outro deles, mas na verdade não tinha memória de ter visto algo que me lembrasse “Stravos” nem da cruz física, nem da forma a ser criada pelos trilhos.
Só me recordei dos austríacos terem referido não terem ideia do tempo que demoraram, pois tinham-se enganado no caminho. Eu estimava duas a três horas de desperdício nuns 10 a 11 Km de percurso supérfluo. Apenas o facto de ter bastante tempo para o final do dia me consolava.

O trajecto de volta foi mais rápido. Sentia uma ânsia enorme de encontrar o local pretendido e, no fundo, deixar de palmilhar caminho de retorno.
A paisagem perdeu relevo e qualquer indicação afixada se tornava um puzzle, que só depois de bem decifrado ficava para trás.

Apenas ao encontrar de novo os quatro burros (nesta altura já a pensar se não seríamos cinco) fui obrigado a verificar a existência da natureza envolvente para lutar de novo contra um morro cerrado que me daria novamente acesso ao trilho do outro lado.

Sempre de mapa na mão, em jeito de turista numa metrópole, encontro o primeiro ponto no caminho que me mostra uma realidade diferente daquela apercebida na direcção oposta.
O que neste sentido se mostra como uma bifurcação, foi completamente ignorado por mim na última passagem.
Não é algo que salte à vista na direcção oposta, mas seria facilmente detectado, tivesse eu vindo “acordado” e não enfeitiçado pela paisagem e pelos pensamentos.

Efectivamente não vem no mapa, ou estou completamente enganado em relação ao sítio onde estou. Verificadas as coordenadas, acrescento a certeza ao facto de estar perante um trilho não cartografado pelos diligentes autores do mapa.
Qual seria afinal o critério para incluir ou excluir trilhos? Ou seria apenas uma questão de não existir à data da sua edição?
Decido investigar onde pode levar. É a subir e depois não me custará descer.

Não passam muitos metros e oiço uns barulhos que não se enquadram na cacofonia gerada pela bicheza que me rodeia.
Imobilizo-me para deixar a audição mais centrada através da diminuição de todas as outras funções corporais.
São seguramente martelos a bater em metal. Facto que comprovo a não mais de 100 metros de subida.
Dois monges estão entregues à tarefa de construir uma pequena casa de chapas metálicas sobre uma estrutura de madeira. Ignoro o objectivo, mas também não foi isso que me trouxe aqui. Limito-me a questionar por “Athos… peak?”, tentando gestualmente indicar que pretendia uma direcção.

Um deles respondeu em inglês, um inglês conciso e claro. Parecia ter o vocabulário suficiente para uma conversa utilitária e pouco mais. Podia ser apenas a minha percepção devido ao modo cortado como construía as frases.

Teria de retornar ao trilho onde estava antes desta pequena exploração e percorrer mais meia-hora antes de encontrar a cruz (Stravos) que faz menção do tamanho com a mão elevada a alguma altura do chão.
Já começo a estar habituado a ver as distâncias medidas em tempo, o que por um lado faz mais sentido do que as distâncias em quilómetros, devido aos declives e obstáculos no terreno; por outro fica muito subjectivo, pois depende muito do ritmo imposto pelo caminhante.

A dúvida que persistia no minha mente também ficou clara. “Stravos” mencionava uma cruz física e não uma cruz formada pelos trilhos. Decidi, assim, mostrar-lhe uma série de cruzes fotografadas pelo caminho.
Nenhuma me pareceu estar junto de um trilho para iniciar a subida, mas com esta oportunidade de comunicar com alguém, aproveitei para retirar o máximo de informação.

Não era nenhuma delas, mas fiquei informado do nome da maioria. Pelo menos por escassos instantes, dado que iniciada a descida, depois de muito agradecer, já todos os nomes estavam acessíveis na minha memória apenas por eventual sessão hipnótica.

“Meia-hora”, penso eu, “que pode isso significar em termos de distância?”, olhando para o mapa.
Estava bem marcado no mapa o suposto local que procurava e eu pensava saber onde estava. Queria confirmar a informação recebida e parecia bater certo.
Só não percebia como passei anteriormente por esse ponto sem me ter apercebido, mas nesta altura já tinha constatado mais coisas que me foram alheias na minha deambulação anterior.

Mesmo com a atenção focada apenas no essencial entre realidade envolvente e correspondência com o mapa, algo me chamou a atenção por alguns instantes, o que me fez recuar uns passos.

A consciência que controlava o corpo em movimento, tentava fazer apenas uso da mente analítica para se sentir segura quanto ao percurso em curso.
O corpo, esse, continuava a sua rebelde maneira de funcionar e só assim era possível seguir caminho. A respiração, batimentos de coração e tudo o mais, operavam de forma automática e numa eficiência total em resposta ao que era pedido, num esforço sempre inconstante. Os olhos e ouvidos captavam tudo o que os rodeava, mas o consciente ignorava a maioria por achá-la irrelevante.
Mas a informação estava lá e o cérebro gosta de ir analisando tudo isso, como que o passageiro do carro que tem tempo para observar a paisagem com muito mais cuidado do que o condutor.
Foi assim que algo me chamou a atenção: num terreno castanho havia algo da mesma cor do chão, quase nem se via, mas era uma moeda. Um dracma muito sujo, que se revelou na minha mão resistindo à limpeza tentada com um esfregar de dedos, pois estaria ali faria muito tempo.

Noutra altura, algumas conjecturas quase de vaticínio, teriam começado a formar-se na minha mente com o fim de se tentarem juntar numa história coerente, num local a combinar por elas.
Neste momento, apenas um movimento automático para guardar a moeda no bolso, tal como amuleto, para o resto da viagem.

Começava a desenhar-se na minha mente o possível local onde acabaria o retorno e começaria uma nova etapa. Só não percebia muito bem onde estaria a cruz e tentava recordar os pormenores do local.
Seria uma fonte onde parei e onde estive algum tempo a mudar águas, armazenar outras e até a lavar a cabeça para retirar o suor e a proteger-me do sol?

Chegado e esse ponto verifiquei o que já suspeitava: falhou-me uma pequena subida, na perpendicular, que dava para um caminho bastante largo. Aí havia uma tabuleta que indicava Agni Anni. Existia também uma indicação por cima da fonte, mas estava desprovida de qualquer tinta.
Tinha vindo por um trilho do qual “Stravos” não era visível, mas aqui estava ele imponente e espetado numa rocha tal como uma “Excalibur” à espera do eleito.

Relativamente perto conseguia-se decifrar “Panaguia”, o abrigo para a noite, e um nome que nunca me diria nada a não ser o facto de indicar 2033 metros, a altitude do pico. No mesmo sinal havia outra indicação que parecia dizer três horas e meia.

Iria iniciar uma nova etapa. Guardei o mapa mais uma vez, aqui não ia precisar dele e as mãos livres seriam uma vantagem para qualquer eventualidade.

Qualquer dúvida sobre o destino do trilho poderia ser desfeita naquele instante pela inclinação que apresentava. Era de tal forma, que parecia ter pressa em conduzir o caminhante ao topo da forma mais directa possível.
Felizmente não era assim, serpenteava a encosta de forma a não se tornar uma autêntica escalada.

Avisto uma pessoa e logo de seguida uma outra. Eram gregos, falavam inglês e íamos com o mesmo objectivo. Mais à frente um terceiro, sentado a descansar numa desculpa de esperar pelos companheiros.
Sigo em frente, ultrapassando o grupo que parece lento depois do comentário de “somos quatro”.

Curva sobre curva, um sol abrasador, cascalho sob os pés e com muita vontade de fugir debaixo deles como se o peso imposto fosse um incómodo.
Avisto uma mochila na sombra. Aliás, uma mochila, umas botas e umas meias ao sol sobre uns troncos.
Aí está uma coisa que não me arriscaria a fazer. Retirar as botas e as meias agora, era o mesmo que poder desfazer algumas bolhas nos pés e não conseguir voltar a calçar-me. Tal e qual o problema de voltar a fechar uma mala de roupa suja que anteriormente estava toda arrumadinha, com roupa bem dobrada e acondicionada.

O dono revelou-se, após a curva toda conquistada, uma personagem diferente do normal. Mirava a paisagem e calçava uns chinelos de tecido. Parei e decidi descansar um pouco também. Não tinha visto sombras até então e adivinhava não haver muitas nos próximos tempos.

Tinha assumido que seria o quarto membro referenciado pelos outros. Não era, nem sabia da existência deles e era dinamarquês.
Possivelmente o quarto membro era eu e a frase deveria ter sido interpretada como “Já somos quatro a subir”, que me incluía a mim e excluía outras eventuais pessoas na mesma demanda.

Fico contente pelo colorido nacional adicionado por este novo desconhecido que cruza o meu caminho. Aqui está uma nacionalidade tão exótica a este local como eu.
Faz-me recordar que em Copenhaga existe (ou existiu, pelo menos) um local que se catalogava como Micronação, Christiania ou Freetown Christiania, que tinha nas suas entradas um cartaz que dizia “You are now entering Free Europe!”.
Christiania foi formada por uma população hippie que ocupou uma antiga base militar com uma configuração de ilha em Gotemburgo. Tinham leis próprias e a comercialização e consumo de drogas leves. Sendo tolerada, era uma das muitas atrações para locais e estrangeiros.

Não vou contar pormenores sobre a viagem para não manchar a honra de quem aí foi comigo, mas só a viagem de ida já demonstra o planeamento português na sua melhor maneira.
Estávamos muito perto de Estocolmo, mas um pouco mais para o interior e teríamos de atravessar grande parte da Suécia em direcção a Malmo. Já nesta altura era possível atravessar de ponte para a Dinamarca.
Na verdade, era parte em ponte e parte em túnel, para permitir a navegação marítima de forma mais eficiente.

Carro alugado e trazido para a frente de casa, munidos da pouca bagagem necessária e uma simples rota composta por uma linha sobre um “mapa” da Suécia, impresso através do site da “Michelin”.
Nem sabíamos se devíamos seguir para a esquerda ou direita na estrada que passava em frente de onde vivíamos.
Conseguimos mesmo assim ir buscar um amigo a outra cidade pelo caminho e chegar ao destino.
Na verdade, acabámos por seguir um caminho muito mais longo do que o necessário. Tirando o condutor, íamos todos a jogar às cartas e sem atenção ao caminho, o que me faz lembrar alguma coisa…
Quando verificámos que íamos em direcção a Gotemburgo em vez de Malmo, alguém disse entre uma das cartadas em curso: “Não há problema, quando lá chegarmos viramos à esquerda e já está.”
Foi quase o que aconteceu!

Após alguma troca de palavras corriqueiras, decidi confirmar com ele a existência do local. Tinha ouvido falar na celeuma envolvida, quer pela sua existência quer pelo seu fecho, alguns anos atrás.
Ainda existia após alguns avanços e recuos, mas a discussão continuava.

A razão principal que o trazia aqui, era o facto de ter começado a estudar oração há um ano atrás. Não houve mais pormenores na explicação nem perguntou os meus motivos. Talvez por falar muito espaçadamente como que a treinar para ministro das finanças em Portugal.
O facto é que os gregos avançaram o suficiente e fizeram do mesmo oásis o sítio para uma paragem de descanso, mudando o rumo da conversa.
Mudança de rumo é um pouco mal aplicado, pois foi mais um retrocesso às perguntas básicas com diferentes “nuances” nas respostas e ramificações no encadeamento.
A pergunta da razão de estar no local é respondida pelo facto de, na Dinamarca, o maior declive ter pouco mais de 200 metros de altitude. Completamente diferente da que me deu a mim, mas facto que decido não questionar.

Um dos gregos, ao saber que ele era dinamarquês, fez um comentário que não fazia parte dos PIIGS, facto que teve de ser explicado ao atónito estranho e que julgo ter continuado a não perceber.
Ele estava cada vez mais a fazer-me parecer alguém pela fisionomia, mas não conseguia perceber exactamente quem.

Nos encontros entre estranhos, o protocolo era sempre igual no que se referia às perguntas efectuadas.
Neste caso específico, uma nova questão era discutida, era a primeira vez que estava exposto a este tipo de escrutínio: o peso da minha mochila.
Tinha uma estimativa de nove a dez quilos entre a pesagem, por curiosidade, feita em casa e com as subtracções de última hora.
A pergunta vinha do grego de maior porte e apenas com o intuito de dizer que a dele pesava vinte e nove quilos; na verdade vinte e quatro quilos de bagagem mais cinco litros de água para as eventualidades.
Já tinha subido uma vez, fazia alguns anos, e queria ir preparado para a falta de água.

Adicionei mentalmente um litro e meio de água à minha estimativa e fiquei preocupado. A realidade é que a quantidade de água recolhida no início da subida já estava subtraída de uma grande quantidade.
Começava a ter dúvidas se seria o suficiente apenas para a subida, nem queria pensar no que fazer se não houvesse água lá em cima. Havia sempre a hipótese de mendigar alguma água a este caminhante precavido.

O dinamarquês pergunta quanto tempo demoraria até “Panaguia”, o “shelter” como ele disse depois. "Uma hora e meia a duas", vem a resposta do grego mais experiente, pelo menos o único que revelou já o ter feito.

Iniciamos todos os lentos movimentos de levantar, como se tal fosse apenas possível por um acto consciente que dava ordens a cada músculo necessário. Ao contrário da maneira involuntária em que o movimento é feito normalmente e sem quebras, o resultado era agora o de um boneco apenas com as articulações essenciais.
Os gemidos e suspiros também se faziam ouvir, o que não fazia muito sentido, pois ninguém estava ali obrigado.

Fui o primeiro a ficar na posição vertical, já com toda a logística apoiada nos ombros e a descair pelas costas.
Por isso e por achar que seria o mais rápido pela amostra já vista, decidi seguir em primeiro lugar através do mono-trilho.
Não sabia das capacidades locomotivas do dinamarquês (de quem não fiquei com o nome), mas esse ainda estava a tentar colocar as meias e teria ainda que calçar as botas.

Volto a sentir na pele o sol abrasador e o trilho de pedras sobre um chão branco, que apenas amplia a sensação de calor. Faz medir cada passada, quer pela inclinação, quer pela dificuldade em não se ir resvalando a cada passo.
Na tentativa de ir escolhendo pedras que parecessem estar fixas, vou sendo bem sucedido nalgumas tentativas e ganhando metros ao caminho.
Algumas sombras, de vez em quando, vão convidando a paragens para descanso, muitas vezes directamente no chão por falta de opções.

Avisto um grupo de três pessoas, que vão espaçadas tal como os gregos anteriores.
É verdadeiramente patente o ritmo distinto que cada um impõe ao passo e lembro-me de novo que aqui as distâncias tendem a ser medidas em tempo.
Muito subjectivo no meu ver, mas a solução deixaria baralhado qualquer um não versado num sistema que teria de incluir muitos factores como distância linear, declive ascendente e descendente, tipo de piso, etc.

Durante algum tempo, o pioneiro do grupo vai revezando a liderança comigo entre os descansos de cada um. Ele parece ganhar distância aos companheiros, talvez no meu encalço.

Finalmente vejo-o parado antes de uma curva que revela um tortuoso caminho em frente. Faço a ultrapassagem final que me levaria a ser o vencedor nesta corrida não existente. Deveria estar agora à espera dos companheiros, para ter a certeza que não se perderiam uns dos outros.

Não havia razão real para isso, dado que era sempre distinto o caminho a tomar.
Durante o trajecto nunca se fica com dúvidas por onde seguir, por mais de alguns segundos.
Aparentes bifurcações não são mais que minúsculos desvios para evitar uma subida mais agreste. Fico com a impressão que são formados por quem sobe ou desce, escolhendo na subida fazer mais uns metros para não galgar “degraus” mais difíceis.

Avisto ao longe uma casa, com aspecto bem mais composto do que esperaria. Vem-me à cabeça a casa do avô da Heidi no topo da montanha. Seria de esperar que acelerasse o passo ao ver o tão esperado ponto de chegada temporária, mas o bater do coração, a respiração e o suor, mandavam-me parar para tomar forças para esta etapa final, ao que obedeci.

A linha de vista que tenho mostra que já lá estão algumas pessoas. O caminho não é directo, faz-se de momento pela minha esquerda, não dando grandes hipóteses de saber a distância real, que não poderia ser muita, de qualquer maneira. Avanço rumo à guarida depois de beber o último resquício de água e rezando para ter a possibilidade de abastecê-la lá em cim

a.

Subir os degraus de acesso ao pátio foi uma sensação de conquista. Estava nos 1500 metros de altitude, segundo o sinal avistado algum tempo antes e nos 1600 metros segundo o mapa. Era indiferente, estava num local já muito acima de tudo o que se via no horizonte… Tudo, excepto o topo ainda por conquistar.

Consigo tirar a mala dos ombros. Não me dói muscularmente mas já se sente o “moer” provocado pelas alças.
Tinha tido algum receio que os ombros fossem um elo fraco no desafio físico, mas acabaram por ser os pés. Pela sensação, nem queria pensar no que me reservaria a visão ao descalçar as botas.
O Inverno rigoroso ainda reforçado pela lesão no tornozelo, iniciaram e reforçaram, respectivamente, a minha actividade de musculação no ginásio… tudo menos ficar parado!
Mais uns treinos involuntários nas viagens de lazer, ao carregar aos ombros com vários quilos de Ema, a minha filha, deveriam ter contribuído para o treino necessário.

Tento questionar um monge que sai da casa sobre a possibilidade de dormida.
Pelas informações que tinha, pensava nem haver aqui monge algum, mas reparo que havia ainda um segundo.
Já estava visível desde que cheguei e só então me apercebo dele.
Sou direccionado a falar com um dos peregrinos que estava no exterior. Algo que lembrava “english” fazia parte da comunicação recebida.

Era um rapaz de porte atlético, o que era reforçado pela roupa que tinha vestida.
Parecia um autêntico atleta preparado para o efeito. Todo de preto com calças largas cheias de bolsos e uma t-shirt justa de mangas compridas, mas arregaçadas.
Claramente aquilo a que se chama “first layer” no vestuário desportivo para o frio.

Da boca inserida numa cabeça de óculos escuros, barba de três dias e cabelo rapado sai um inglês tão perfeito que tive de confirmar ser grego.
Fico informado haver água lá dentro e, quanto a dormida, deveria apenas escolher uma cama desocupada.

Entro num espaço que contrasta com o exterior pela fraca luminosidade e uma temperatura bem mais fria.
Vejo de imediato o que parece um poço do lado direito e dois beliches encostados ao fundo, mas já ocupados.

Passo a uma nova sala, maior e em que dos dois beliches, apenas as camas de cima, estão livres. Prefiro escolher entre duas de três camas simples.
Faço a escolha pelo afastamento da porta de acesso e da pequena janela que existe.
Ambas as salas têm uma porta fechada sendo possível ver, numa das vidraças, ser um acesso a um tipo de cozinha.

A cama não passa de uma moldura de metal com molas metálicas. A outra cama livre tem um colchão de espuma já sem um pedaço e com uma cor que não inspira confiança. Encontro uma esteira de ginástica já marcada de ferrugem em muitos pontos e “faço a cama” onde pretendo dormir.

O primeiro teste não agrada devido ao som causado pelo chiar das molas horizontalmente dispostas entre os dois lados da cama, nem na profundidade com que me afundo. Não existe escolha, ou isto ou o chão!

Por agora, limito-me a deixar a mochila a marcar o sumptuoso leito acabado de ser encontrado, para fazer o resto da subida aliviado de peso.
Há cerca de dois anos atrás teria o peso da mochila incorporado debaixo da pele. É incrível como custa carregar com ele agora...

Impõe-se o reabastecimento de água para a subida. Junto do poço, Thomas, o meu mais recente “amigo”, mostra-me como fazer uma tarefa que teria sido facilmente aprendida sozinho.
Retira-se uma chapa quadrada que esconde um poço que recolhe água da chuva e, com o uso de um balde preso com uma corrente, retira-se o precioso líquido.

Para a utilização na lavagem de objectos ou partes corporais, pode-se usar uma pia esculpida na pedra que faz o conjunto.
Um litro seria suficiente? Questiono-me eu em voz alta mais para mim mesmo do que para que alguém pudesse ouvir. Um litro e meio seria melhor, diz ele.
Lamento ter feito a pergunta. Não ia mudar os meus planos. Tinha trazido três garrafas de meio litro para facilitar o transporte e apenas tinha duas mãos. Não era cómodo levar garrafas nos bolsos e, como tal, um litro teria de ser suficiente.

Sento-me um pouco no muro que delimita o pátio. Estou virado para a casa e com o pico do monte em linha de vista. Procuro um início de carreiro e identifico terreno pisado entre a já rara vegetação existente a esta altitude.
A partir dos 2000 metros nunca existem árvores e a sua ausência começa a ser sentida sempre antes, conforme as condições do terreno.

O resto do trilho é uma incógnita e só se vê uma encosta íngreme de cascalho de tamanho gigante. Parece que alguém despejou pedras a partir do topo, ficando a encosta toda com um aspecto áspero e esbranquiçado. Talvez por isso tenha lido que uma das suas designações é "monte branco", facto que tinha atribuído à neve no Inverno.

Questiono o Thomas sobre o caminho. A subida demora cerca de duas horas e não há que enganar, é só seguir o trilho. “The only way is up”, remata ainda no final.
Responde ainda à questão do possível perigo. “No, just watch your steps, pal!”

O “segundo” monge está agora em movimentações junto com outro “civil”. Parece que me pergunta se vou subir.
Afirmo que sim e tento perceber se também vai, mas não encontro sincronismo na comunicação. Fico com a sensação de que não são gregos.
Apesar do uso frequente de “dá” nas suas conversas, não é seguramente búlgaro que falam, pois já consigo diferenciar búlgaro de outras línguas.

A resposta à pergunta não conseguida é feita pelo afastamento do “monge e companhia” a caminho do início do trilho.
Espero ainda algum tempo como que a ganhar coragem e sigo também o único caminho que me pode levar ao topo.

O avanço dado ao dueto foi rapidamente desfeito, ficando eu parado atrás do monge que se segura a uma das únicas pequenas árvores ainda visíveis. O companheiro em pose de quem está em profundo respeito por algo.
Após uns momentos sem saber o que fazer, por parecer que se estava a desenrolar um tipo de cerimónia, decido pela continuação do percurso.

Começo a entrar no que, lá de baixo, parecia uma encosta sem acesso e vou deslindando um trilho de pedras entre pedras. Está mais limpo dos grandes pedregulhos na maioria da sua extensão, mas estes ainda teimam em aparecer de vez em quando.
O pouco que se podia vislumbrar agora do caminho, mostrava um percurso sempre em “ésses” como que a varrer, a cada volta, a encosta de um lado ao outro. A única forma de não escalar quase na vertical a colina rochosa. Restava ainda perceber a última parte que se adivinhava mais complicada.

Passaram duas pessoas por mim no seu percurso descendente. Parei e, olhando para trás, via-se o refúgio cada vez mais pequeno. Notei ainda a dupla que ultrapassei sentada numa pedra bem longe do sítio onde me encontrava. A paragem que me patrocinou a ultrapassagem era definitivamente para descanso. Ando demasiado influenciado pela natureza religiosa do local ao ponto de já ver motivos mais sagrados no mais mundano fact

o.

Sinto o agravamento de uma sensação já antes sentida. A vontade de comer algo “salgado”.
Os únicos mantimentos sólidos ingeridos durante o percurso foram barras de cereais.
Do ponto energético são mais do que suficientes, mas o risco de desidratação aumenta.
Pelo suor perdemos muitos sais e chega-se a um ponto em que quanto mais água se bebe, mais se perde pelo desequilíbrio hidroeléctrico.
A reduzida actividade renal largada por mim na natureza, dizia-me que ainda não tinha atingido um ponto crítico nesse aspecto.
A falta excessiva de sais levaria a uma filtragem maior de água para manter o equilíbrio - uma das duas formas de ficar seriamente desidratado. A outra seria: “demasiada” água em proporção aos sais levaria os rins a desidratarem o corpo no cumprimento da sua tarefa.
Apesar de tudo, “sonhava” com acepipes de cariz salgado encabeçados por uma entrada de arenque.
Ficou a promessa de me deliciar imediatamente aquando do retorno à “civilização”.

Já deixei a encosta em que me encontrava e começo a perceber que o acesso final é feito por uma zona não visível lá de baixo. O caminho toma outro rumo e vou consultando a altitude no telemóvel. A partir dos 1800 metros a consulta faz-se impacientemente, tentando perceber o ritmo de ganho de altitude. Facto que me valeu ter inadvertidamente parado a gravação do percurso durante algum tempo.

O troço final é realmente uma “quasi escalada”, em que as mãos são essenciais para ajudar o avanço pela encosta, fazendo apoio em rochas laterais. Mais uns passos e… cheguei ao topo!

Uns momentos para recuperação de fôlego que a esta altitude se torna mais complicado. O ar está rarefeito e o vento parece ser uma constante a contribuir para dificultar a tarefa involuntária, mas essencial à vida.
Subo ainda ao rochedo onde se encontra a cruz e ganho os últimos horizontes, que se encontram tapados pela igreja quando nos encontramos ao nível do solo.
Sento-me e faço questão de enviar duas mensagens de texto. Uma para “casa” e outra para o colega involuntariamente ausente desta aventura.

Aprecio as vistas nas mais variadas direcções, registo o momento em fotos ao local e “auto-retratos” para a posteridade e sinto a calma presente. Está cumprido um objectivo de monta, a maior diferença de altitude atingida por mim, apenas fazendo uso do meu corpo.

Não é a pressa de sair, que não existe, mas de voltar ao abrigo que me remete de novo para o caminho.
A descida será bem mais fácil e rápida, mas ainda assim deverá ser feita com muito cuidado.
Em termos de esforço as descidas são sempre mais simples, mas na maioria das vezes requerem sempre mais precaução e técnica.

Antes de descer, reparo numa coluna branca que se eleva num dos lados. As nuvens são obrigadas a subir na vertical, oprimidas contra a encosta. As dimensões do fenómeno são enormes, mas o aspecto é de vapor a sair de um caldeirão com água a ferver. Assumo que a temperatura seja diametralmente oposta neste caso.

Passo o monge e acompanhante que se encontram sentados a comer, o que parece um tipo de peixe em conserva com pão.
Sinto um pico de inveja, mas limito-me a responder à pergunta gestual de quanto faltará para o resto da subida.
Respondo abrindo ambas as mãos uma vez, seguido apenas da direita para indicar uns estimados quinze minutos, isto após ter mostrado ter aferido a diferença de altitude.

Aqui de cima consegue-se vislumbrar todo o trilho por aí abaixo. E algures na sua extensão vêm quatro pessoas, uma das quais identifico como o Thomas. Carregam as mochilas, por isso assumo que vão pernoitar lá em cima.
Cruzamo-nos, perguntam pelo monge e percebo que dependem do mesmo para a abertura da igreja onde vão dormir num anexo esta noite. Se não ficaram muito tempo parados a comer já deveriam ter chegado, assumo eu.
Informo que demorei uma hora para subir e sou obrigado a recorrer ao método de aferição, perante o ar de espanto deles.
Verifico a diferença horária entre dois SMS’s enviados, um do abrigo e outro do topo. Uma hora e dez minutos no máximo, informo eu, mas chamando a atenção para o facto de ir sem mochila.

  • We had a calling, we are walking as we had no backpacks - diz o Thomas sorrindo.

Vão também para Lavras amanhã, depois de ver o nascer do sol e comer alguma coisa. Estimam passar no abrigo pelas oito da manhã. Despedimo-nos com um compromisso ténue de irmos juntos se eu estiver por lá aquando da sua inevitável passagem naquele ponto.

Quase a chegar ao final do destino para o dia, passo o bravo grego dos “cinco litros de água” que se dirige para o topo, sem mochila e com bastões de caminhada.
Vem com um grande sorriso estampado na cara, assim como outro dos colegas que inicia a caminhada minutos depois, quando estou mesmo a entrar no pátio.
O terceiro está sentado no muro sem intenções de subir. Informa-me que sente dores nos joelhos, possivelmente do peso a mais que apresenta para a altura que tem. Está a precisar de crescer um pouco mais.

A água foi suficiente, só agora me dou conta desse facto, no qual não despendi um pensamento sequer durante o percurso.
Inicio agora uma nova forma de estar. Imitando o que vi quando cheguei aqui pela primeira vez, decido fazer uso do sol ainda suficientemente alto para desfrutar e descansar um pouco.
Mostro o peito ao mundo e descalço-me, revelando as inúmeras bolhas que florescem nos pés. Algumas substituíram por completo a parte frontal de alguns dedos.

Primeiro deito-me no muro, mas ao não conseguir uma posição confortável, depois de muita tentativa, sento-me e observo em redor.
Chegaram todos os outros que encontrei no caminho e mais algumas pessoas. Não haverá camas para todos. Tenho de verificar se alguém se apoderou do meu “reino”.

O dinamarquês já lá está, sentado num banco de pedra na sombra da casa e usando a mesma como encosto.
Tem agora um chapéu na cabeça, apesar de estar à sombra. Lê um livro e fuma cachimbo. Descubro com quem se parece. Pode ser que numa comparação directa não encontrasse nenhum ponto em comum, aqui é o Aragorn, ou melhor, o actor que encarna essa personagem no filme “O senhor dos anéis” e de quem desconheço o nome. Nunca fui bom para nomes de estrelas e apenas sei as que repetidamente são “publicitadas”.

Não tenho posição confortável para estar naquilo que esperava ser um momento de descanso.
Julgo que o cansaço extremo não ajuda a relaxar. Não sinto os músculos doridos, mas nota-se o efeito de uma sensação estranha por todo o corpo.
Levanto-me e dirijo-me para o interior, onde começo por reabastecer as duas garrafas agora vazias.
Estou descalço e o chão faz sentir sua temperatura extremamente fria nas palmas dos pés. De início é uma sensação agradável, como que relaxante, mas rapidamente se torna incómoda ao ponto de doer.
É incrível a temperatura a que está o chão, considerando o calor que ainda está lá fora. Foram pelo menos dois dias de sol intenso e nuvens.

Apresso a missão que me levou a entrar e, depois do reabastecimento de água, verifico apenas o estado da cama e da mochila.
Está tudo no sítio e intacto. Aparentemente, a única diferença passa por mais uma cama ocupada, aquela que tem o colchão roído. Estranho haver ainda camas vagas, tendo em conta o número de pessoas entretanto chegadas.

De volta ao exterior, e já de novo calçado a algum custo, dou uma vista de olhos ao redor do local. Existem mais uns pequenos edifícios para os quais não identifico as funções.

Atrás do abrigo, ainda dentro do pátio, a resposta para uma dúvida. Já estavam montadas duas tendas. Uma individual e outra para um grupo. Esta era dos três gregos que encontrei no início da subida.
Junto a ela estava agora o membro que não subiu, a outra concluí ser do dinamarquês, mas nunca cheguei a confirmar.

Na continuação, um pequeno caminho murado onde estava o monge a deglutir uma parca refeição junto das três últimas pessoas com quem me cruzei na subida.
Eram alemães, mas tive dificuldade em perceber, pareciam estar a dizê-lo a custo. Só depois me lembrei que estava na Grécia e do clima que actualmente se vivia.
Estiveram sempre isolados de todos os outros e para comigo também não foram muito expansivos; afinal sou português.

O monge, por outro lado, era uma “peça” interessante. Barba e cabelo comprido como seria de esperar, mas sem qualquer cobertura, deixando ver uma risca ao meio num cabelo pouco lavado.
Uma roupa preta bastante mais surrada do que me habituei a ver por aqui e coberta por um casaco de malha verde. O aspecto geral era o de um mendigo.
Fui desde logo, de modo gestual, ofertado do que assumi ser o famoso Chiporo.
Os alemães já pareciam bem servidos do alcoólico néctar, visível nos olhos apesar de haver um só copo na mão de cada um.

Fui incitado a beber de uma só vez como quem está entre um grupo de amigos e ouve as palavras de ordem “bota abaixo”.
Declinei respeitavelmente, fazendo menção a um chão duro onde cairia redondo e fui bebericando entre conversa de circunstância.
Tive a oportunidade de ficar ciente sobre alguns factos interessantes sobre o monge, perdão, eremita. Pelo menos intitulava-se como tal. Um eremita do século XXI, com certeza.

Tinha telemóvel e um constante problema com a bateria, por isso estava muito interessado num carregador solar que alguém tinha no local.
Neste abrigo, por exemplo, não havia qualquer electricidade, tal como num grande número de outros locais por esta península fora.

Vivia normalmente numa gruta situada relativamente perto, na encosta adjacente, mas que se localizava a cerca de cinco horas de viagem, por só ser acessível de baixo.
Já me tinha questionado se era mesmo grego pois utilizava, nas tentativas de comunicação, muitas expressões que pareciam latim.
Era romeno e inclusive dirigia-se a um Skiti romeno, de vez em quando, para consultar o e-mail e comunicar com o mundo exterior.
Um eremita extrovertido que depois me entregou, em modo de súplica, um bloco de notas dizendo “telefone e internet”.
Anotei no primeiro sítio livre o meu número pessoal junto com o meu e-mail, imitando os outros já existentes.
Fui presenteado com um cartão de visita. Um pequeno quadrado de papel amarelo onde podia decifrar “Ivan Luca” e um número de telefone em formato local.

Parecia falar grego fluentemente. Fui informado de que estava lá já há dezasseis anos, tempo suficiente para falar grego aos meus “olhos”.
Faz menção, aos alemães, de algo que me pareceu ser um pedido para usar um telemóvel para enviar uma mensagem. Da segunda vez que o fez, e continuando a não ter nenhuma reacção dos mesmos, por desentendimento ou por apenas não o quererem fazer, ofereço-lhe o meu.

Com um sorriso na cara e o telemóvel recebido com ambas as mãos faz, depois, uma busca nos vários blocos que guarda num simples saco de plástico. “Roménia”, diz ele apontando para um número sem indicativos e pedindo-me que insira o destinatário.
Consulto contactos profissionais na Roménia e concluo a inserção dos números no formato necessário. Mudo ainda a língua de escrita para aquela que ele domina melhor e que vai utilizar na missiva electrónica.

Não resisto em tirar uma foto ao eremita maravilhado com o ecrã táctil e o preenchimento automático que faz das palavras romenas que vai escrevendo.

Entre as pausas que faz para relatar as maravilhas do aparelho a um grego que por ali passa, tenho de ajudá-lo a desbloquear de novo o ecrã agora escurecido.
Fico curioso com o que terá escrito, mas para não cair em tentação apago a mensagem logo de seguida.

Começam a chegar os últimos aventureiros que foram ao topo e o sol começa a esconder-se por detrás da montanha, deixando no mar uma sombra em forma de triângulo. Ainda faltam algumas horas para o pôr-do-sol, mas aqui, no entanto, vamos ficar apenas com luz e sem o sol no horizonte.

Sou ofertado com duas pequenas sanduíches pelo grego que ficou a guardar a tenda, enquanto os amigos subiram ao monte, mas já se consegue vê-los na descida.
Talvez se tivesse apercebido que não tinha comido, pois comentei esse facto enquanto bebia a aguardente.
Com as sanduíches já na mão, asseguro-me de que não lhe fazem falta, mais por cortesia do que propriamente por ter intenções de devolvê-las.

Abro uma para verificar o conteúdo e retiro os pedaços de salsicha, pois não como carne. Deixo ficar o queijo, a mostarda, a alface e o tomate. Têm um aspecto delicioso, mas são de uma tamanho diminuto.
Esperava uma sensação diferente ao comê-las. Sinto o sabor que me agrada, em especial por não ser o doce das barras de cereais, mas tirando isso, existe um vazio de sensações depois de engolido. Tinha receio de abrir um eventual apetite voraz, depois de atiçar o estômago com comida “de verdade”.
Foi mais uma sensação de quem come uma tapa depois de já bem comido e apenas para não deixar restos. Sabe bem, mas não traz felicidade de maior.

Reparo num cão que vai comendo restos fornecidos por um dos outros e aproveito para fazer algum uso das salsichas subtraídas à minha refeição.
Quem já lhe fornecia comida era um grego com um inglês muito bom. Não vai subir, pelo menos hoje; queixa-se da dificuldade da subida.
Fala do Monte Olimpo e dos seus vários picos, alguns inacessíveis, sem risco algum, mas onde a maioria da encosta é bem mais suave na inclinação. Diz que os seus cerca de 3000 metros são bastante mais acessíveis do que este, estando sempre cheio de pessoas que ali caminham “acima, abaixo”.
Aqui a dificuldade é bem maior e o número de pessoas menor, já por si diminuído pelos entraves de entrada na península. Adiciono mentalmente à questão o motivo pelo qual a maioria das pessoas vem aqui, o que não inclui o esforço do corpo, mas antes o consolo do espírito.

Refere um fenómeno no Monte Olimpo que dá nome a um dos locais. Pela explicação do epíteto traduzido para inglês é “caldeira” e o fenómeno em tudo igual ao que vi lá em cima, mas elevado em alguns graus na espectacularidade.
É também dos que vai dormir em tenda. Queixa-se do frio que faz dentro do abrigo. Explica que as grossas paredes de pedra ainda vão demorar a aquecer, pois tem estado frio até há poucos dias.
Não fosse o vento e sentira-me tentado a dormir lá fora. Fora de questão, por nem saco de cama ter.
Oferece-se para me emprestar um casaco ao saber da minha lacuna total no âmbito de material de campismo, mas declino por já ter um casaco de vela para o efeito.

Ainda se dá a chegada de mais duas pessoas. Uma delas chama a atenção pela avançada idade que aparenta e o “modelo” que apresenta. Fita azul no cabelo, tronco nu e uns calções curtos como a única peça de vestuário digna desse nome.

Começa aquela fase do dia em que a luz é insuficiente para ser dia, mas a noite ainda não se faz sentir. Quem ainda não montou a tenda, inicia a tarefa. Quem tem cama reservada, inicia o uso da mesma.
Decido fazer o mesmo por falta de outra actividade disponível, pois sono não é coisa que sinta de momento.

A luz que faz questão de mostrar a sua presença pela pequena janela não é suficiente para incomodar um profissional do sono como eu. Sou capaz, para espanto de alguns, de dormir profundamente num voo Lisboa-Madrid e chego a demorar quase um minuto a adormecer quando chego à cama.
No fundo, a luz que se faz sentir ajuda nas arrumações e preparações finais.
A t-shirt de dormir fica como cabeceira, uma camisola serve de almofada e o despertador é activado para as 7:00 no caso de o sono dominar. Queria estar pronto às 8:00 para me juntar ao grupo que pernoitou no topo.

O som que emana do leito improvisado sobre a pressão do meu corpo é enorme. Vou ter de me manter quieto para não acordar metade da Grécia a cada mudança de posição.
Revejo o meu pensamento ao começar a ouvir o barulho medonho feito por um deles, que se encontra enrolado numa manta reflectora, seguido pouco depois de um ronco que parece ter sido inventado no momento. Alguém deveria registar a patente deste som, ficaria bem num filme de terror.

Não tenho dificuldade em adormecer. Difícil é ficar nesse estado, acordo várias vezes antes da meia-noite sem perceber porquê e depois disso reconheço o frio como causa principal.
Não é um frio preocupante, mas o suficiente para ser incómodo, uma sensação que se vai agravando ao longo do restante tempo.
Antes de adormecer lembro-me de uma estatística do dia, cerca de 20 000 passos!

Capítulo 4.

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